domingo, 24 de maio de 2009

Um Homem: Kurt Crüwell

via Bibliotecário de Babel de José Mário Silva em 23/05/09

A Ofensa
Autor: Ricardo Menéndez Salmón
Título original: La Ofensa
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora
N.º de páginas: 128
ISBN: 978-972-0-04502-7
Ano de publicação: 2009

A 1 de Setembro de 1939, quando completa 24 anos, o alfaiate Kurt Crüwell tem o destino traçado: herdará um dia a loja do pai, casará com a namorada (uma dactilógrafa judia) e circulará no mundo pequeno-burguês de Bielefeld. Acontece que Adolf Hitler, nesse mesmo dia 1 de Setembro, ordena a invasão da Polónia, o que muda tanto o curso da História como o futuro pacato de Crüwell.
Destacado para o 19.º Corpo Blindado do 6.º Exército, Kurt deixa-se apanhar pela euforia militar nazi em Saarbrücken, onde «tudo eram grinaldas, bandeiras ao vento, veículos velozes em cujas carroçarias se espelhavam os lombos dos corcéis e o cetim das braçadeiras». A «besta loura» prepara-se para conquistar o mundo e o poder das suas tropas parece invencível. Sem ter que disparar um tiro, limitando-se a conduzir num sidecar o seu superior hierárquico (Hauptmann Löwitsch), Kurt deambula pela França ocupada e encanta-se com o ambiente artístico de Montmartre. Quando a sua divisão chega a Nantes, porém, a realidade da guerra mostra-lhe por fim o seu rosto brutal.
Na manhã de 2 de Janeiro de 1941, numa pequena aldeia da Bretanha, aparecem mortos quatro cavaleiros alemães. Para vingar estas mortes, Löwitsch fecha todos os habitantes da aldeia na igreja (91 pessoas) e manda incendiar o templo. «Como reage o corpo de um homem face à presença do horror? (…) Pode um corpo dizer: "Basta, não quero ir mais longe, isto é demasiado para mim"? Pode um corpo esquecer-se de si próprio?» Diante do massacre, Kurt colapsa, recusa o mundo, esquece-se efectivamente de si próprio. Ou seja, torna-se insensível.
No sanatório onde recupera, há um médico (de cuja identidade se apropriará mais tarde) que vê, neste paciente único, «A Metáfora». Porquê? Porque no gesto radical de «suspender os seus vínculos com a realidade», Crüwell está a ser apenas o «molde de uma Europa cobarde» que se vergou ao fascismo e optou pela «paralisia, pela abnegada e fatídica paralisia». Uma paralisia a que ironicamente Lasalle, o médico, também sucumbirá, talvez porque «o pavor e a ferocidade não têm pátria e nidificam por igual em todos os corações».
Romance de pendor filosófico, A Ofensa é uma exploração dos caminhos mais negros e absurdos da experiência humana. Com o seu estilo cuidado (de longas frases, à maneira de Marcel Proust), com o seu notável sentido da economia narrativa e as suas subtis transições entre as várias escalas da História (dos movimentos colectivos às angústias individuais), Menéndez Salmón escreveu um livro certeiro, em que a brevidade é apenas sinónimo de rigor e depuração.

Avaliação: 8,5/10

[Texto publicado no n.º 79 da revista Ler]

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