Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não e...
Guiné > Regiãod e Tombali > Cufar > CAOP 1 > Dezembro de 1973 > O Alf Mil Graça de Abreu, posando junto a um Allouette III, 3, ao aldo do piloto.
Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > CAOP 1 > Agosto 1972 > O Alf Mil Graça de Abreu numa DO 27.
Guiné > Região de Tombali > Caboxanque > Fevereiro de 1974 > O Alf Mil do CAOP 1, de Kalashnikov em punho.
Guiné > Região de Tombali > Cufar > CAOP 1 > Novembro de 1973 > O Alf Mil Graça de Abreu, o segundo a contar da esquerda, com furriéis e soldados da Companhia de Caçadores 4740
Foto : © António Graça de Abreu (2008). Direitos reservados.
1. Texto enviado pelo António Graça de Abreu, em 24 de Abril:
Meu caro Luís Graça
Aqui vai a encomenda prometida (1).
Um abraço,
António Graça de Abreu
2. Todos temos dois anos - mais mês, menos mês - das nossas vidas passados em terras da Guiné. Foi o destino que nos calhou em sorte, entre 1963 e 1974. Quase todos nós embebemos o corpo e alma numa África quente, em sangue, exausta pela loucura dos homens, pelo desvairo dos tempos.
Passaram-se trinta, quarenta anos. Jamais esquecemos esse passado e hoje, simpáticos ex-combatentes da Guiné, sexagenários, alguns já septuagenários, fazemos das recordações um motivo forte para sentirmos bem o pulsar do coração.
Traumas todos temos. Permanece connosco a memória dos companheiros, brancos e negros, amigos e inimigos de então, que caíram a nosso lado, permanece a imagem de extrema pobreza das gentes da Guiné, a doença nos olhos e no corpo dos meninos cor de chocolate, o calor, a humidade, o suor, os meses, os anos de sofrimento e incerteza. Também temos a alegria de nos reencontramos, os batalhões, as companhias, os almoços anuais, a sã camaradagem tantos anos depois.
Até temos este excelente blogue do Luís Graça e Camaradas da Guiné onde extravasamos, por bem, muito do que nos vai na alma.
Tive a sorte de viver a Guiné entre 1972 e 1974, como alferes no Comando de Agrupamento Operacional nº 1 (CAOP 1), primeiro em Teixeira Pinto, depois em Mansoa e finalmente os últimos onze meses, até Abril de 1974, em Cufar, no sul do território.
Tive a sorte de, nesse período, a partir do nosso Comando Operacional, acompanhar por perto a actividade militar das 35ª e 38ª Companhias de Comandos, das companhias de comandos africanos, das companhias de pára-quedistas 122 e 123, dos destacamentos de fuzileiros no Cacheu e mais tarde no Chugué e em Cafal.
Tive a sorte de conhecer e de ser subordinado de alguns militares de excepção, como o coronel pára-quedista Rafael Ferreira Durão, o coronel pára-quedista João Curado Leitão, os majores João Pimentel da Fonseca, Mário Malaquias e Nelson de Matos.
Tive a sorte de conhecer o pessoal de outros batalhões e companhias espalhadas pelas zonas onde vivi. Destaco a minha CCAÇ 4740, de Cufar.
Tive a sorte e o privilégio de viver o intenso dia a dia com os meus soldados, de tentar conhecer as populações nativas, de procurar entender o PAIGC e os seus guerrilheiros.
Tive a sorte de, mesmo na Guiné, questionar a natureza política das guerras de África (o que me levantou problemas graves com os meus superiores), de não concordar com o regime que nos enviava para guerras contra os ventos da história e da razão, guerras politicamente perdidas desde o primeiro dia.
Tive a sorte, e o engenho, de escrever na altura um diário de guerra.
Em finais de 2006 decidi recuperar esses textos e publicá-los em livro. É o Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura, editado em 2007, em Lisboa, pela Guerra e Paz Editores (2). Os meus textos foram todos escritos em 1972, 1973 e 1974. Está lá o quotidiano desses anos, o correr dos dias e dos meses, as operações, os mortos, os feridos, as bebedeiras, o sofrimento e a alegria dos nossos vinte anos. Não é um livro de memórias (que tanta vez distorcem entendimentos e realidades), não é um diário cerzido agora cá como se o autor estivesse lá.
Por tudo o que acabei de referir, creio poder afirmar que, em 1973/74, (esta é a questão fundamental!, a guerra na Guiné não estava militarmente perdida, não era iminente a derrota militar do exército português. Se os guerrilheiros do PAIGC, com meios cada vez mais sofisticados, combatiam heroicamente pelo fim do colonialismo, pelo que acreditavam ser a liberdade da sua pátria, pela ideia de um futuro melhor, é verdade que não dispunham de forças militares capazes de derrotar o exército português.
Capa de Diário da Guiné, do nosso Camarada António Graça de Abreu, publicado em 2007, pela Guerra e Paz Editores. O livro foi escrito na Guiné, a partir das notas do seu diário e dos seus aerogramas. Foi alferes miliciano no CAOP1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)
Vamos a factos.
(i) A 13 de Dezembro de 1973, em Cufar, sul da Guiné, escrevia eu no meu Diário:
"(…) Anteontem houve heli-assalto na nossa região. Vieram dez helicópteros, dois Nordatlas, um Dakota, duas DOS que transportaram pára-quedistas e comandos africanos. Os hélis saíam daqui e largaram as tropas directamente no mato num local pré-determinado junto à floresta onde se calculava estar escondida uma grande arrecadação de material de guerra.(…)" .
(ii) A 26 de Dezembro de 1973, em Cufar, sul da Guiné, escrevia no meu Diário:
"Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.
"Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.
"Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de 'Estrela Telúrica'. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a 'Estrela Telúrica' prolongar-se-á por mais uma semana.
"Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª [CCmds], fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a 'embrulhar', seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, 1 com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.
"Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.
"Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.
(…) "Natal, Tombali/ Cantanhez, sul da Guiné, ano de 1973, operação 'Estrela Telúrica'. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade."
(iii) Como é possível o nosso amigo Beja Santos afirmar recentemente no nosso blogue, na crítica infeliz ao último livro do coronel Manuel Amaro Bernardo (3): "Em 1973/74 (…) o PAIGC passou a ter a total iniciativa entre o Norte e o Leste, em todo o espaço fronteiriço com a Guiné-Conacri" ?
(iv) Agora, e para concluir, algumas questões:
É ou não verdade que em 1973/74 (como em 1965 ou 1969!) a tropa portuguesa controlava todos os mais importantes centros urbanos da Guiné, também as vilas e a grande maioria das aldeias, com as respectivas populações?
Nas chamadas zonas libertadas, o PAIGC controlava populações de aldeias escondidas na floresta, que viviam em condições extraordinariamente difíceis, em casas de cana e colmo, sem energia eléctrica, sem assistência médica, com poucas e primitivas escolas, quase sem meios de transporte, sem arroz suficiente para o pão de cada dia, sujeitos a constantes ou esporádicos bombardeamentos da aviação portuguesa
É ou não verdade que a tropa portuguesa dispunha de mais de três dezenas de aviões e helicópteros, de umas dezenas largas de pistas de aviação (entre Maio de 1973 e Julho de 1973 os meios aéreos quase deixaram de voar, até se conhecer bem o funcionamento dos mísseis Strella ou Sam 7), de lanchas de desembarque grandes e médias, de zebros e sintex com motores potentes, de centenas e centenas de viaturas auto, de estradas asfaltadas, etc?
É ou não verdade que os guerrilheiros do PAICG dispunham apenas de canoas, movimentavam-se a pé e, numa guerra de guerrilha, atacavam aquartelamentos (disparavam as armas e fugiam, voltavam a refugiar-se no mato), faziam emboscadas à tropa portuguesa que se deslocava no território, colocavam minas anti-carro e anti-pessoal, defendiam valorosamente as suas aldeias quando o exército português se aproximava das Caboiana, Morés, Cantanhez, etc., os seus redutos nas zonas libertadas.
É ou não verdade que, em 1973/74, o número de efectivos do exército português rondava os 40.000 homens e os guerrilheiros do PAIGC não ultrapassavam os 7.000? O insuspeito Luís Cabral, primeiro presidente da Guiné-Bissau, afirmava a José Pedro Castanheira, em entrevista ao jornal Expresso, a 28.05.1998: "Havia tantos ou mais soldados guineenses no exército colonial do que no nosso próprio exército."
É ou não verdade que, pós independência, os poderosos do PAIGC instalados em Bissau mandaram fuzilar centenas de comandos africanos e militares guineenses que haviam combatido ao lado dos portugueses? Porque o novo governo da Guiné Bissau era forte? Ou, pelo contrário, porque era fraco e esses homens, com uma capacidade e preparação militar superior constituíam uma ameaça para os novos poderes?
Para concluir, mais uma citação, esta de mais uma insuspeita pessoa, o cabo-verdeano Aristides Pereira em entrevista ao nosso amigo Leopoldo Amado, em 1998, transcrita pelo coronel Manuel Amaro Bernado no seu interessantíssimo (sobretudo pelos muitos dados que nos fornece) Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerrilheiros, Guiné, 1970 – 1980, Lisboa, Ed. Prefácio, 2007:
" (...) Leopoldo Amado: Por altura do 25 de Abril de 1974, o PAIGC tinha uma capacidade militar maior que as tropas coloniais?
"Aristides Pereira: Maior, não diria, na medida em que estavam bem apetrechadas, tinham uma logística mais bem montada que a nossa, para além de um número superior de efectivos do que nós. A verdade é que no fim o soldado português já estava mal; estava farto daquilo". (...)
Meus caros tertulianos e companheiros da Guiné. A guerra não estava militarmente perdida. Estávamos era fartos da guerra, de um conflito que não tinha solução militar. A solução era, sempre foi, política. Daí o 25 de Abril, um movimento militar com um claro objectivo de natureza política, derrubar o regime e acabar com as guerras em África.
O que veio depois, as tragédias subsequentes, são outra História.
Um abraço,
António Graça de Abreu
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. postes de:
17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)
14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)
(2) Vd. postes de ou sobre o António Graça de Abreu e o seu livro:
5 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1498: Novo membro da nossa tertúlia: António Graça de Abreu... Da China com Amor
6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)
12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1517: Tertúlia: Com o António Graça de Abreu em Teixeira Pinto (Mário Bravo)
27 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1552: Lançamento do livro 'Diário da Guiné, sangue, lama e água pura' (António Graça de Abreu)
16 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1601: Dois anos depois: relembrando os três majores do CAOP 1, assassinados pelo PAIGC em 1970 (António Graça de Abreu)
17 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1668: In Memoriam do piloto aviador Baltazar da Silva e de outros portugueses com asas de pássaro (António da Graça Abreu / Luís Graça)
1 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1807: António Graça de Abreu na Feira do Livro para autografar o seu Diário: Porto, dia 2 de Junho; Lisboa, dia 10
7 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2414: Notas de leitura (5): Diário da Guiné, de António Graça de Abreu (Virgínio Briote)
(3) Vd. postes de:
30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote
31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)
2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (7): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)
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