RUBEM FONSECA
via Da Literatura de Eduardo Pitta em 11/04/08
Hoje no Público:
Para introduzir Rubem Fonseca (n. 1925), o maior escritor brasileiro vivo, nada como começar por citar três frases do argentino Tomás Eloy Martínez: «Nunca vou me esquecer da primeira vez que li Rubem Fonseca» / «Fonseca instala o medo ou o mal no próprio interior da linguagem» / «Nenhum escritor é mais cinematográfico que Fonseca». Em 1982, Martínez estava exilado em Caracas, e um acaso fez com que lesse Feliz Ano Novo (1973). Quando acabou Passeio noturno, um dos contos do livro, nada foi como dantes: «Essas poucas páginas bastaram para o universo de Fonseca tatuar minha alma com a malignidade de uma planta carnívora e a destreza de uma ave de rapina.» Não conheço outro juízo tão exacto.
Em Portugal, Rubem Fonseca tem publicada uma dúzia de títulos, sensivelmente um terço da obra, sendo Ela e Outras Mulheres o último em data. Trata-se de 27 contos, sinalizados por igual número de nomes femininos. Cada história constrói um microcosmo particular em torno das obsessões do autor: amoralidade, sexo e violência. Fonseca guardou memória dos anos em que trabalhou na polícia (1952-58), e esse caldo de cultura, chamemos-lhe assim, explicando quase tudo, não explica o engenho com que dá voz à desumanidade: «Fui apertando lentamente o pescoço de Diana e senti a sua vagina ir se contraindo e logo um líquido abundante inundou o meu pénis. Estou gozando, ela conseguiu dizer, ofegante, meu Deus, estou gozando. Apertei mais a sua garganta, e mais, com toda a minha força. Quando senti os ossos quebrando, também gozei, um gozo longo e purgante.» O som de ossos a quebrarem é música na obra de Fonseca. Quem leu Passeio noturno decerto não esqueceu o «barulho do impacto partindo os dois ossões» da mulher atropelada. Nesse conto de 1973, um executivo da alta classe-média alivia a testosterona atropelando por opção. No de agora, Diana, uma aficionada de bondage, paga com a vida o primeiro orgasmo. Nem a americana A. M. Homes consegue exprimir um tal grau de frieza.
À medida que as narrativas se sucedem, acompanhamos os anseios, os medos, as fragilidades e os fantasmas das pessoas comuns. O tema do abuso de menores abre o volume. Gabriel tem 14 anos, é gago, e mau aluno de português até ao dia em que uma professora à beira dos 40 anos muda isso tudo. Os dois escapam à justiça porque Gabriel, a conselho do pai, mente à polícia. O Estatuto da Criança e do Adolescente tipifica como crime a submissão de adolescentes, «não importava o sexo, à exploração sexual», mas Gabriel seguiu as instruções do pai, e o comisssário Lacerda ficou convencido: «Disse que o meu filho lhe dissera que a professora Alice jamais tocara nele. E que, conforme a sua experiência em interrogar menores, ele não tinha dúvidas de que o meu filho dizia a verdade.» Em regra, as personagens são oriundas das classes desfavorecidas, com o seu código moral próprio: traficantes favelados que não matam pai ou mãe; beatos que julgam poder impor padrões comportamentais; mulheres humilhadas que matam os maridos; maridos traídos que matam as mulheres; toda uma imensa galeria de tipos machistas.
Em Fonseca, vadia (a mulher promíscua) é um tropo. Não precisa ser bela, mulher é logo vadia. Jéssica, por exemplo. Jéssica é feia, «o queixo é grande demais, a testa muito estreita, ela é feia de frente e de lado. Mas o corpo é muito bonito, não existe no mundo mulher com o corpo mais bonito do que o dela.» Vive obcecada com a possibilidade de uma plástica. O marido não tem dinheiro: «Você é um fodido.» No ínterim, Jéssica entrega-se a outro, mas o outro vai adiando a espórtula: «E enquanto espero fico dando o cuzinho para você, não é?» No dia em que o marido descobre, parte-lhe o nariz, o maxilar, os dentes, os ossos que ficam debaixo dos olhos, a cartilagem das orelhas. A maioria destes homens não chora, embora alguns arquejem «como um animal mortalmente ferido que não consegue rugir.» Para a maioria deles, a culpa é da cidade grande: «Ninguém deve sair da sua terra.»
Mas nem só de descamisados sem escrúpulos vive a obra. O espectro inclui escritoras que sofrem de apneia; gestores bem sucedidos que a imprensa sensacionalista destrói; burgueses que o acaso transforma em assassinos (os irmãos que vingam o estupro e morte de Laurinha, uma menina de 10 anos, fazem do Anton Chigurh de Cormac McCarthy um menino de coro); detectives cultos que acompanham o perfil de criminosos na net; ou artistas plásticas que arrancam o fecaloma da mãe («a mão inteira pelo seu esfíncter») como pressuposto de arte. Fonseca está sempre um passo à frente da realidade, com a vantagem de uma sintaxe, mais do que irrepreensível, pessoalíssima. Por isso me parece fútil, mas é mera suposição (não tenho o original para fazer o cotejo), que algumas fracções de frases possam ter sido arredondadas para português de Portugal, artifício que tende a amolecer o asserto declarativo.
Além de contos e romances, à volta de quarenta títulos publicados um pouco por todo o mundo, uma dezena deles adaptados ao teatro e televisão, Rubem Fonseca escreveu os guiões de inúmeros filmes. No país de doutores em que Portugal se transformou, a nota biográfica da badana não esquece a licenciatura em direito, mas omite a passagem do autor pela polícia do Rio de Janeiro, detalhe que não pode ser ignorado. Até porque não corresponde à verdade que Fonseca tenha desistido de exercer advocacia por ter optado pela literatura e o cinema. Fonseca não foi advogado porque foi polícia (nessa qualidade tendo-se deslocado aos Estados Unidos para aprender novas técnicas), e quando saiu da polícia foi trabalhar para a Light, o equivalente da nossa EDP. A literatura chegou tarde — o primeiro livro foi publicado em 1963, quando ele tinha 38 anos —, sim, e em grande forma. Entre os muitos prémios que recebeu, dentro e fora do Brasil, conta-se o Camões, que lhe foi atribuído em 2003.
Sinfonia do Mal, in Ípsilon, 11-4-2008, p. 46. Cinco estrelas.
Para introduzir Rubem Fonseca (n. 1925), o maior escritor brasileiro vivo, nada como começar por citar três frases do argentino Tomás Eloy Martínez: «Nunca vou me esquecer da primeira vez que li Rubem Fonseca» / «Fonseca instala o medo ou o mal no próprio interior da linguagem» / «Nenhum escritor é mais cinematográfico que Fonseca». Em 1982, Martínez estava exilado em Caracas, e um acaso fez com que lesse Feliz Ano Novo (1973). Quando acabou Passeio noturno, um dos contos do livro, nada foi como dantes: «Essas poucas páginas bastaram para o universo de Fonseca tatuar minha alma com a malignidade de uma planta carnívora e a destreza de uma ave de rapina.» Não conheço outro juízo tão exacto.
Em Portugal, Rubem Fonseca tem publicada uma dúzia de títulos, sensivelmente um terço da obra, sendo Ela e Outras Mulheres o último em data. Trata-se de 27 contos, sinalizados por igual número de nomes femininos. Cada história constrói um microcosmo particular em torno das obsessões do autor: amoralidade, sexo e violência. Fonseca guardou memória dos anos em que trabalhou na polícia (1952-58), e esse caldo de cultura, chamemos-lhe assim, explicando quase tudo, não explica o engenho com que dá voz à desumanidade: «Fui apertando lentamente o pescoço de Diana e senti a sua vagina ir se contraindo e logo um líquido abundante inundou o meu pénis. Estou gozando, ela conseguiu dizer, ofegante, meu Deus, estou gozando. Apertei mais a sua garganta, e mais, com toda a minha força. Quando senti os ossos quebrando, também gozei, um gozo longo e purgante.» O som de ossos a quebrarem é música na obra de Fonseca. Quem leu Passeio noturno decerto não esqueceu o «barulho do impacto partindo os dois ossões» da mulher atropelada. Nesse conto de 1973, um executivo da alta classe-média alivia a testosterona atropelando por opção. No de agora, Diana, uma aficionada de bondage, paga com a vida o primeiro orgasmo. Nem a americana A. M. Homes consegue exprimir um tal grau de frieza.
À medida que as narrativas se sucedem, acompanhamos os anseios, os medos, as fragilidades e os fantasmas das pessoas comuns. O tema do abuso de menores abre o volume. Gabriel tem 14 anos, é gago, e mau aluno de português até ao dia em que uma professora à beira dos 40 anos muda isso tudo. Os dois escapam à justiça porque Gabriel, a conselho do pai, mente à polícia. O Estatuto da Criança e do Adolescente tipifica como crime a submissão de adolescentes, «não importava o sexo, à exploração sexual», mas Gabriel seguiu as instruções do pai, e o comisssário Lacerda ficou convencido: «Disse que o meu filho lhe dissera que a professora Alice jamais tocara nele. E que, conforme a sua experiência em interrogar menores, ele não tinha dúvidas de que o meu filho dizia a verdade.» Em regra, as personagens são oriundas das classes desfavorecidas, com o seu código moral próprio: traficantes favelados que não matam pai ou mãe; beatos que julgam poder impor padrões comportamentais; mulheres humilhadas que matam os maridos; maridos traídos que matam as mulheres; toda uma imensa galeria de tipos machistas.
Em Fonseca, vadia (a mulher promíscua) é um tropo. Não precisa ser bela, mulher é logo vadia. Jéssica, por exemplo. Jéssica é feia, «o queixo é grande demais, a testa muito estreita, ela é feia de frente e de lado. Mas o corpo é muito bonito, não existe no mundo mulher com o corpo mais bonito do que o dela.» Vive obcecada com a possibilidade de uma plástica. O marido não tem dinheiro: «Você é um fodido.» No ínterim, Jéssica entrega-se a outro, mas o outro vai adiando a espórtula: «E enquanto espero fico dando o cuzinho para você, não é?» No dia em que o marido descobre, parte-lhe o nariz, o maxilar, os dentes, os ossos que ficam debaixo dos olhos, a cartilagem das orelhas. A maioria destes homens não chora, embora alguns arquejem «como um animal mortalmente ferido que não consegue rugir.» Para a maioria deles, a culpa é da cidade grande: «Ninguém deve sair da sua terra.»
Mas nem só de descamisados sem escrúpulos vive a obra. O espectro inclui escritoras que sofrem de apneia; gestores bem sucedidos que a imprensa sensacionalista destrói; burgueses que o acaso transforma em assassinos (os irmãos que vingam o estupro e morte de Laurinha, uma menina de 10 anos, fazem do Anton Chigurh de Cormac McCarthy um menino de coro); detectives cultos que acompanham o perfil de criminosos na net; ou artistas plásticas que arrancam o fecaloma da mãe («a mão inteira pelo seu esfíncter») como pressuposto de arte. Fonseca está sempre um passo à frente da realidade, com a vantagem de uma sintaxe, mais do que irrepreensível, pessoalíssima. Por isso me parece fútil, mas é mera suposição (não tenho o original para fazer o cotejo), que algumas fracções de frases possam ter sido arredondadas para português de Portugal, artifício que tende a amolecer o asserto declarativo.
Além de contos e romances, à volta de quarenta títulos publicados um pouco por todo o mundo, uma dezena deles adaptados ao teatro e televisão, Rubem Fonseca escreveu os guiões de inúmeros filmes. No país de doutores em que Portugal se transformou, a nota biográfica da badana não esquece a licenciatura em direito, mas omite a passagem do autor pela polícia do Rio de Janeiro, detalhe que não pode ser ignorado. Até porque não corresponde à verdade que Fonseca tenha desistido de exercer advocacia por ter optado pela literatura e o cinema. Fonseca não foi advogado porque foi polícia (nessa qualidade tendo-se deslocado aos Estados Unidos para aprender novas técnicas), e quando saiu da polícia foi trabalhar para a Light, o equivalente da nossa EDP. A literatura chegou tarde — o primeiro livro foi publicado em 1963, quando ele tinha 38 anos —, sim, e em grande forma. Entre os muitos prémios que recebeu, dentro e fora do Brasil, conta-se o Camões, que lhe foi atribuído em 2003.
Sinfonia do Mal, in Ípsilon, 11-4-2008, p. 46. Cinco estrelas.
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