ROBERT GRAVES
Nota Pessoal
Há anos a televisão transmitiu a série "Eu Cláudio, Imperador" baseado no célebre livro de Robert Graves. Série belíssima que nos traça uma panorânima da vida romana ao tempo do Imperador Cláudio.
Rui Moio
Há anos a televisão transmitiu a série "Eu Cláudio, Imperador" baseado no célebre livro de Robert Graves. Série belíssima que nos traça uma panorânima da vida romana ao tempo do Imperador Cláudio.
Rui Moio
via Da Literatura by Eduardo Pitta on 2/1/08
Hoje no Público:
É para mim um mistério o facto de Robert Graves (1895-1985), um dos mais importantes autores de língua inglesa, continuar praticamente inédito em Portugal. Do pouco que há traduzido, destacaria os Mitos Gregos (1955) e Eu, Cláudio (1934). Logo ele, que é notabilíssimo poeta, ficcionista, ensaísta e memorialista, autor de cerca de cento e cinquenta títulos, entre os quais uma famosa biografia de T. E. Lawrence, o coronel britânico que hoje identificamos como Lawrence da Arábia, ou as recolhas de poesia que começaram por fixar o seu nome no cânone dos “poetas da guerra” (casos de Wilfred Owen, Siegfried Sassoon, Rupert Brooke e outros) mas depressa extravasaram esse âmbito.
Chegou agora a vez de Rei Jesus, a sua muito heterodoxa biografia de Cristo, publicada em 1946 sob um coro de aplausos e objurgatórias. O que à partida pareceria uma provocação, faz todo o sentido no contexto de uma obra que se ocupara já da reinterpretação de mitos clássicos, históricos e literários, como fora o caso da autobiografia do imperador romano Cláudio, entretanto popularizada pela televisão; de Conde Belisário (1938), sobre as façanhas do general bizantino que venceu os persas; ou de Wife to Mr Milton (1943), acerca das vicissitudes do casamento de John Milton com Marie Powell.
Homem de sólida cultura humanística — seu pai, Alfred Perceval Graves, além de poeta foi bispo de Limerick —, escolheu fazer da vida de Cristo «um romance histórico pelo método analéptico», isto é, recuperando acontecimentos esquecidos através da suspensão do tempo. Enquanto narrador, Graves coloca-se no lugar do velho Agabo, o Decapolitano, porque, diz ele, «as divergências da tradição sinóptica em relação àquilo que parece ser a história verdadeira exigem um comentário explicativo sobre a política da Igreja depois da queda de Jerusalém.» O ponto de partida foi o livro do Novo Testamento conhecido por Actos dos Apóstolos, atribuído ao evangelista Lucas.
Este Rei Jesus contraria muito do que sabemos a partir do Evangelho segundo S. João (o qual, por sua vez, difere dos de Mateus, Marcos e Lucas por estender a três anos o que os anteriores resumem a um), pois Graves considera que o apóstolo João demonstraria «premeditada ignorância de assuntos judaicos». O problema do nascimento de Jesus é outra fonte de atrito. Ciente da provável ofensa que faz a muitos cristãos, Graves rejeita a virgindade de Maria, ou seja, a «doutrina mística do Nascimento em Virgindade», discorrendo largamente sobre «a audaciosa teoria do miraculoso nascimento de Jesus». Afinal, se nenhuma espécie de mistério envolvesse «os seus pais», o nascimento de Jesus teria outra explicação. Nessa convicção, e apoiado nas Sagradas Escrituras, confronta várias hipóteses, entre elas a de que Maria já estivesse grávida quando assinou «o contrato de casamento com José», facto que, a ter-se verificado, faria de Jesus, «de acordo com a Lei Judaica [...] um bastardo, mesmo que o casamento não tivesse sido consumado e ela se tivesse, entretanto, casado em segredo com outro homem qualquer.» De caminho, reconhece que estas polémicas não têm a força que tinham no tempo de Justino.
No livro, os cristãos são referidos como “crestãos” (os seguidores de Chrestos), no sentido de serem homens bons, simples, íntegros, modestos e auspiciosos, por oposição a cristãos, «que sugere desafio ao Imperador» e uma clara intenção de «nacionalismo judaico». Mas crestão também pode querer significar “simplório” (atente-se na invectiva de Pôncio Pilatos a Cristo no momento da crucificação), e Simplórios é justamente o título do primeiro capítulo da obra: «Eu, Agabo, o Decapolitano, comecei esta obra em Alexandria no nono ano do Imperador Domiciano e completei-a em Roma no décimo terceiro ano do mesmo. É a história do fazedor de milagres Jesus, legítimo herdeiro dos domínios de Herodes, Rei dos Judeus, que, no décimo quinto ano do Imperador Tibério, foi sentenciado à morte por Pôncio Pilatos, governador-geral da Judeia.»
Parecerá a muita gente que Graves trata a figura de Cristo como trataria a de um político coevo. Creio que a intenção foi essa, daí o escândalo que o livro suscitou há sessenta anos, época em que foi elogiado em privado por pessoas (Churchill foi uma delas) que não podiam fazê-lo em statement público. A imagem de um Cristo libertador, no sentido político do termo, pode chocar com a visão catequista de grande parte dos católicos. Mas Graves não faz teologia, nem pretende corrigir o discurso eclesiástico. É como romance que Rei Jesus deve ser lido, por muito rigorosas que sejam as suas fontes, e atento o cuidado posto no confronto das várias versões dos textos bíblicos. Em matéria de tal melindre, só alguém com o estatuto de Graves poderia, em registo ficcional, dar credibilidade epistemológica à dicotomia entre sagrado e profano. E ele não hesitou em fazê-lo.
O Rei dos Judeus, in Ípsilon, 1-2-2008, pp. 32-33. Quatro estrelas.
É para mim um mistério o facto de Robert Graves (1895-1985), um dos mais importantes autores de língua inglesa, continuar praticamente inédito em Portugal. Do pouco que há traduzido, destacaria os Mitos Gregos (1955) e Eu, Cláudio (1934). Logo ele, que é notabilíssimo poeta, ficcionista, ensaísta e memorialista, autor de cerca de cento e cinquenta títulos, entre os quais uma famosa biografia de T. E. Lawrence, o coronel britânico que hoje identificamos como Lawrence da Arábia, ou as recolhas de poesia que começaram por fixar o seu nome no cânone dos “poetas da guerra” (casos de Wilfred Owen, Siegfried Sassoon, Rupert Brooke e outros) mas depressa extravasaram esse âmbito.
Chegou agora a vez de Rei Jesus, a sua muito heterodoxa biografia de Cristo, publicada em 1946 sob um coro de aplausos e objurgatórias. O que à partida pareceria uma provocação, faz todo o sentido no contexto de uma obra que se ocupara já da reinterpretação de mitos clássicos, históricos e literários, como fora o caso da autobiografia do imperador romano Cláudio, entretanto popularizada pela televisão; de Conde Belisário (1938), sobre as façanhas do general bizantino que venceu os persas; ou de Wife to Mr Milton (1943), acerca das vicissitudes do casamento de John Milton com Marie Powell.
Homem de sólida cultura humanística — seu pai, Alfred Perceval Graves, além de poeta foi bispo de Limerick —, escolheu fazer da vida de Cristo «um romance histórico pelo método analéptico», isto é, recuperando acontecimentos esquecidos através da suspensão do tempo. Enquanto narrador, Graves coloca-se no lugar do velho Agabo, o Decapolitano, porque, diz ele, «as divergências da tradição sinóptica em relação àquilo que parece ser a história verdadeira exigem um comentário explicativo sobre a política da Igreja depois da queda de Jerusalém.» O ponto de partida foi o livro do Novo Testamento conhecido por Actos dos Apóstolos, atribuído ao evangelista Lucas.
Este Rei Jesus contraria muito do que sabemos a partir do Evangelho segundo S. João (o qual, por sua vez, difere dos de Mateus, Marcos e Lucas por estender a três anos o que os anteriores resumem a um), pois Graves considera que o apóstolo João demonstraria «premeditada ignorância de assuntos judaicos». O problema do nascimento de Jesus é outra fonte de atrito. Ciente da provável ofensa que faz a muitos cristãos, Graves rejeita a virgindade de Maria, ou seja, a «doutrina mística do Nascimento em Virgindade», discorrendo largamente sobre «a audaciosa teoria do miraculoso nascimento de Jesus». Afinal, se nenhuma espécie de mistério envolvesse «os seus pais», o nascimento de Jesus teria outra explicação. Nessa convicção, e apoiado nas Sagradas Escrituras, confronta várias hipóteses, entre elas a de que Maria já estivesse grávida quando assinou «o contrato de casamento com José», facto que, a ter-se verificado, faria de Jesus, «de acordo com a Lei Judaica [...] um bastardo, mesmo que o casamento não tivesse sido consumado e ela se tivesse, entretanto, casado em segredo com outro homem qualquer.» De caminho, reconhece que estas polémicas não têm a força que tinham no tempo de Justino.
No livro, os cristãos são referidos como “crestãos” (os seguidores de Chrestos), no sentido de serem homens bons, simples, íntegros, modestos e auspiciosos, por oposição a cristãos, «que sugere desafio ao Imperador» e uma clara intenção de «nacionalismo judaico». Mas crestão também pode querer significar “simplório” (atente-se na invectiva de Pôncio Pilatos a Cristo no momento da crucificação), e Simplórios é justamente o título do primeiro capítulo da obra: «Eu, Agabo, o Decapolitano, comecei esta obra em Alexandria no nono ano do Imperador Domiciano e completei-a em Roma no décimo terceiro ano do mesmo. É a história do fazedor de milagres Jesus, legítimo herdeiro dos domínios de Herodes, Rei dos Judeus, que, no décimo quinto ano do Imperador Tibério, foi sentenciado à morte por Pôncio Pilatos, governador-geral da Judeia.»
Parecerá a muita gente que Graves trata a figura de Cristo como trataria a de um político coevo. Creio que a intenção foi essa, daí o escândalo que o livro suscitou há sessenta anos, época em que foi elogiado em privado por pessoas (Churchill foi uma delas) que não podiam fazê-lo em statement público. A imagem de um Cristo libertador, no sentido político do termo, pode chocar com a visão catequista de grande parte dos católicos. Mas Graves não faz teologia, nem pretende corrigir o discurso eclesiástico. É como romance que Rei Jesus deve ser lido, por muito rigorosas que sejam as suas fontes, e atento o cuidado posto no confronto das várias versões dos textos bíblicos. Em matéria de tal melindre, só alguém com o estatuto de Graves poderia, em registo ficcional, dar credibilidade epistemológica à dicotomia entre sagrado e profano. E ele não hesitou em fazê-lo.
O Rei dos Judeus, in Ípsilon, 1-2-2008, pp. 32-33. Quatro estrelas.
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