Feito o diagnóstico, resta pois agir...
via NOVA ÁGUIA de Renato Epifânio em 20/02/08
Excerto de um texto a ser publicado no primeiro número da NOVA ÁGUIA:3. A Morte de Portugal, Porto, Campo das Letras, 2007.
É este o último livro publicado por Miguel sobre o sentido histórico da cultura portuguesa. O livro em que Miguel Real se assume definitivamente como um Autor, libertando-se até, a nosso ver, da “sombra” de Eduardo Lourenço – este é, de resto, julgamos, um livro que, pela sua “ousadia”, Eduardo Lourenço jamais poderia, hoje, ter escrito, em virtude de se ter tornado uma figura demasiado “consensual”. Isto apesar do que diz o próprio Miguel Real no seu prefácio ao livro: “Assim, na linha de Eduardo Lourenço, este ensaiozinho [?!] diligencia desenhar os quatro complexos culturais por que Portugal se foi concebendo a si próprio ao longo de 800 anos de História (…).”.
Ainda nesse prefácio, designa, Miguel Real, o primeiro como o “complexo viriatino”. Por ele se denota a alegada “origem exemplar de Portugal”, figuração que, como refere o Autor, “emerge na segunda metade do século XVI através da imagem de Viriato, herói impoluto, puro, virtuoso, soldado modelo, chefe guerreiro íntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotência do ocupante estrangeiro, conduzindo os lusitanos a vitórias sucessivas – povo singelo e singular que, não obstante a sua fragilidade militar, é vencedor das legiões do império romano”.
Designa, Miguel Real, o segundo como o “completo vieirino”. Por ele se denota o alegado estatuto de Portugal como “nação superior”. Daí a referência a Vieira: “…da decadência do Império a partir de D. João III, do fracasso de Alcácer Quibir e da perda da independência nasce o assombro de nos sentirmos insignificantes depois de nos termos sabido gigantes na descoberta da totalidade do mundo. Padre António Vieira, resgatando o providencialismo de Ourique e o milenarismo judaico de Bandarra, deu voz majestática a este cruzado sentimento de grandeza e pequenez, recusando testemunhar a nossa real insignificância europeia, dourando-nos o futuro com o regresso anunciado às glórias do passado, agora sob o nome de Quinto Império.”.
Contrapolar a este é o terceiro complexo, que Miguel designa como o “complexo pombalino”. Por ele, ao invés, se denota o alegado estatuto de Portugal como “nação inferior”: “Desde a revolução liberal de 1820, todos os ímpetos modernistas portugueses têm nascido deste complexo cultural que eleva a Europa a destino e sentido de Portugal – o complexo pombalino, hoje acefalamente política dominante do Estado português que, como ‘bom aluno’, se põe nas filas das estatísticas, subordinando a sua imensa valia cultural à mera e exclusiva valia dos indicadores económicos, gerando um notório sentimento de mal-estar e de inferioridade entre as actuais elites portuguesas, envergonhadas do povo rústico, bruto e arcaico que comandam (…).”.
Resultante da contrapolaridade destes dois últimos, mas ainda em referência ao primeiro, indica, Miguel Real, um quarto, que designa como o “complexo canibalista”: “…em função dos três complexos referidos, idiossincraticamente portugueses, se quiséssemos definir o tempo moderno e contemporâneo da cultura portuguesa entre 1580 – data da perda da independência – e 1980 – data do acordo de pré-adesão à Comunidade Económica Europeia –, passando simbolicamente pelo ano de 1890 – data do Ultimatum britânico a Portugal –, atravessando 400 anos de história pátria, defini-lo-íamos como o tempo de canibalismo, o tempo da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devorando uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatuídas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras peçonhas a fazer desaparecer.”[1].
Daí, enfim, o impiedoso retrato que Miguel Real faz do Portugal de hoje, o mesmo é dizer, de todos nós: “O Portugal desenhado pelos quatro complexos acima enunciados encontra-se moribundo, submerso pela avalanche de costumes liberais e americanos (…).”; “Mistura de complexo pombalino com um arreigado individualismo americano, o projecto político português caracteriza-se hoje, nos comecinhos do século XXI, pela exaltação unidimensional do homem técnico, o homem-eficiente, o homem-contabilista, o homem-robótico, desprovido de consciência histórica global (…).”; “É um novo Portugal que está nascendo, sem sublimidade, sem espiritualidade, sem projecto superior às suas forças e à sua dimensão (…), o Portugal dos pequeninos (…).[2]”. Em suma, somos hoje, cada vez mais, uma “canina imitação do pior da Europa”.
Feito o diagnóstico, resta pois agir – daí, falo por mim, a NOVA ÁGUIA, daí o MIL…
[1] Daí ainda o dizer-nos que “não temos feito história da cultura com o pensamento, mas com o sangue, sustentando-nos antropofagicamente do corpo do adversário”.
[2] Como escreve ainda Miguel Real nesta passagem, “com estes homens, no século XV, nem a Madeira teríamos descoberto, nem Ceuta teríamos conquistado – os custos eram então, de longe, superiores aos benefícios imediatos, desconhecendo-se totalmente os benefícios futuros, a existirem”.
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