Meu pai (um texto com sete anos, como se fosse hoje)
Foi-se embora deste mundo há 14 anos. Parece muito – e será muito para os outros –, mas para nós, para a família, parece pouco, muito pouco tempo. Os anos sucedem-se, a dor vai sendo substituída pela memória doce, a amarga saudade vai ficando cada vez mais saudade pura. Resiste-se melhor e vive-se outra vez. Já conseguimos falar do meu pai com um sorriso. Já conseguimos lembrar para lá das lágrimas. Mas a presença dele paira eterna e permanentemente sobre nós.
Nos meus dias, há pequenos gestos, frases, pessoas, ideias, factos, imagens, que me levam até ele, e dele até à vida que então vivia, e daí a uma incontornável pausa nostálgica no tempo. Todos os dias vivo estes regressos inesperados. Com prazer e gosto, nuns casos, com tristeza noutros, indefinidamente nalguns. Pode ser o cheiro a tinta de um jornal, um olhar que passa pela pastelaria «Mourisca», encontros num adeus a um jornalista, um programa de televisão, um maço de «SG Ventil», uma paisagem, um Fiat 1500.
Pode ser até o que ele não viveu. Quando escrevo, e vou emendando aqui, corrigindo ali, voltando a escrever – tudo automaticamente, sem pensar no gesto que faço mas levando a mão ao rato do computador – às vezes paro e penso no meu pai. Revejo-o nas noites do Campo Grande a batalhar na velha máquina de escrever «Hcesar», assim chamada porque as primeiras teclas tinham essa sequência: h, c, e, s, a, r. O meu pai era um preciosista, no mais puro sentido. Cada correcção num texto era uma folha nova, cada «gralha» era mais uma página para recomeçar. Ele não dava margem para dúvidas, menos ainda para gralhas, e as suas crónicas eram entregues no semanário «O Jornal» prontas para serem «fotocompostas». Sem erros, nem emendas feitas à mão, nem chavetas com acrescentos, nem rasuras. Nada. Ele passava a prosa as vezes que fossem necessárias. Perdia horas à procura da data precisa de um acontecimento, ou do nome completo de um realizador. A sua noitada semanal de escrita era longa e tensa, na procura da exactidão, no acerto do pormenor, no uso devido de cada linha. Com ele eu aprendi a procurar o rigor, a não me dar por satisfeito à primeira, a achar que tudo está sempre por aprender e que o nosso grau de exigência deve ser ainda maior do que o do leitor.
Mas, do outro lado do espelho, com a sua morte eu aprendi que há um limite para o sacrifício e o preciosismo. Que nem tudo vale a pena. Que o prazer não pode ficar atrás de tudo. Que quem corre por gosto também se cansa. E que, por mais rigorosos que sejamos, tudo o que fazemos são rascunhos de qualquer outra coisa.
Passados estes anos, sentado em frente a um computador – um objecto que ele já não conheceu, e que tantas horas de sono lhe teria seguramente devolvido –, eu revejo aquelas noites e comparo-as com estas que vivo também a escrever. O que há dele em mim? O que mudou do seu universo para o meu universo?
Um corrector ortográfico assinala-me erros e gralhas. Troco o lugar das frases sem trocar folhas, sem setas, sem chavetas, sem rasuras. Volto atrás e acrescento uma frase. A hora de entregar pode ser a hora de paginar – ninguém vai «passar» este texto, fazer «provas», montar à mão as colunas numa folha branca presa num cavalete. Parece tudo tão diferente...
... E é tudo tão igual: são palavras, uma eterna insatisfação porque nada fica efectiva e realmente como pensei, são jornais nas mãos de quem os quer ler, são pessoas e vidas de que a gente fala, umas vezes melhor, outras bem pior, e sempre sabendo que a realidade não acaba num ponto final, mas que o nosso texto vai ter de ter, em algum lugar, um ponto qualquer, nem que sejam umas reticências. E depois, é a procura, a busca, uma coisa que não sabemos explicar mas está longe e parece que nunca lá chegaremos. Há sempre uma pontinha de angústia. Certo, há sempre uma aproximação ao prazer, um gosto misterioso, um estado de alma. Parece que tudo se repete. Até esta circunstância simples de estar, noite fora, a escrever e a lembrar-me do que dele me lembro, quando dele me lembro, e a partilhar com quem não conheço o que, provavelmente, a mais ninguém interessa. Senão a mim e aos meus. Mas também isso me ensinou: o jornalismo vive tanto do rigor como do que é imponderável. A memória, por exemplo. Sem ponto final, como ele via a vida. Como eu vejo a vida...
O meu pai, António Rolo Duarte, morreu a 5 de Fevereiro de 1987. Há 21 anos, portanto.
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