PÁTRIA DAS GENTES E DOS OUTROS
via NOVA ÁGUIA by joao marques de almeida on 2/9/08
Nota- Edito este texto na convicção de que o próximo numero da revista não esgotará a sua discussão e não querendo deixar de entrar nela.
Este texto é uma parte de um trabalho um pouco mais amplo, tendo ficado de fora a parte que abordava as ideias de AS sobre tema, bem como uma terceira que desenvolvia uma reflexão sobre o que fazer.
Por último peço desculpa de ter ultrapassado em muito o espaço recomendado pelos coordenadores desta página
A Morte de Portugal, escreveu em livro Miguel Real, em voz firme e oportuna, mas eu diria o sentimento de Pátria em perigo. Sentimento suficientemente representado em letra, entre nós, porventura o de António Sardinha o mais eloquente e não menos controverso, usando termo ameno.
De entre muitos autores, até porque todos nem caberiam aqui, seria injusta uma selecção, fica , por isso nome único, o de Garrett, em memória do seu nacionalismo literário. Mas fica-lhe o nome sobretudo para juntar voz à voz de forte acusação que José-Augusto França faz ouvir onde o seu verbo alcança face ao barbarismo cultural cometido pelo actual ministro da Economia ao vender, para a construção de apartamentos de luxo, a casa, assinalada por lápide, onde o escritor viveu o resto da vida. Escreveu Augusto França no seu último livro, Garrett e Outros Contos :
Atento e partícipe além-túmulo, Garrett espera vingança sobre os modernos hunos.
De entre as definição do conceito de Pátria, talvez o mais consensual seja a que diz ser ele o sentimento que une os indivíduos, que por nascimento ou adopção, partilham um lugar, a mesma cultura, a história, os valores e os laços afectivos. Ou, de forma literária, dito por Miguel Torga, para quem o Brasil é Pátria de emigração: é o espaço telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre humanamente e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto sossega, a sua inteligência fulgura, o seu passado tem sentido e o seu presente tem futuro.
Em ambos os casos, solidária ao conjunto, pressupõe-se a língua que para Fernando Pessoa é ela própria a Pátria.
Deixemos Viriato, para muitos mito fundador, a cavalgar livre nas montanhas
e fixemo-nos no território, por intenção ou sorte, litoral, conquistado aos mouros pelos descendentes ou eles próprios cavaleiros transalpinos. Foram estes, com os que por aí ficaram de suevos, que marcaram Minho e Galiza, de autóctones, (lusitanos para facilitar e sem falar em celtas, púnicos e fenícios), visigodos mesclados com romanos, de berberes e árabes que para cá vieram com Tarik, Muça em 711 e mais tarde novamente os árabes do omíada Abdul Rahman e de novo os berberes almorávidas (al-Murabitun) já no século XI., forjaram um Estado, um povo, uma Nação, uma língua.
Pátria só mais tarde e se antes só de reis e príncipes, sem lhes tirar mérito que bons serviços prestaram.
Pátria de todos, vislumbra-se depois, aqui e acolá, mas já com mais nitidez em Aljubarrota que deu estátua e páginas de história a Dom Nuno Álvares Pereira, símbolo da nova nobreza que o povo, na verdade a burguesia, de Lisboa impusera. Burguesia que deu seus filhos ao combate, na maioria estudantes em Coimbra e que na batalha alinharam na Ala esquerda, dita dos Namorados de tão grande glória, com estandarte verde e rubro e ao centro Nossa Senhora da Conceição.
Mas o povo de mourejar também lá estivera, das 6500 tropas alinhadas 4000 eram dele, e ele quis do feito também deixar memória e deixou-o com símbolo, a Padeira de Aljubarrota, pois aos livros não tinha acesso.
Que foi uma guerra da Pátria e em defesa dele, também Camões disso não duvida:
Das gentes populares , uns aprovavam
A guerra com que a pátria se sustinha;
Uns as armas alimpam e renovam,
Que a ferrugem da paz gastadas tinham;
Capacetes estofam, peitos provam,
Armam-se cada um como convinha;
Outros fazem vestidos de mil cores,
Com letras e tenções dos seus amores.
Lusiadas, canto IV, 22
Dos descobrimentos, passar por cima pareceria esquecimento, mas não se vê aí o sentimento de que se fala. Na manobra e no velame a escumalha das prisões e galés, não marinheiros exaltados por nobre missão. A bandeira era a da pimenta, quanto pilotos, escrivães e capitães, por que não boa gente, embora da palavra de Jesus a outras gentes só maus exemplos.
Até em Fernando Pessoa é por El-Rei D. João Segundo que o homem do leme, embora tremendo, manteve a nau em rumo.
Bravura, certamente, descobriu-se ventos e marés lá nos confins..6 e maior feito ainda foi o andar contra o vento, a bolinar. Deu-se ao mundo outros mundo e até outras gentes de quem esquecidos os cruéis tormentos irmãos já somos, mas mais que as lágrimas de Portugal a fazer o mar salgado é o clamor dos povos dos novos continentes feitos vítimas que paira inutilmente na alma da gente pois de novo é de sangue a esteira que estamos a deixa no nosso navegar.
Tranquilamente, após Alcácer Quibir, duques e barões põem a recato os nobres sentimentos pátrios e abrem os braços a Castela agraciados com o ouro que Filipe II vai pilhando aos índios americanos. Resiste-lhe o Prior do Crato, da linhagem de Dom Luis, mas não houve entre a nobreza portuguesa um outro Dom Nuno Álvares Pereira e até o povo que hesita acaba por não aderir vendo na contenda uma mera questão dinástica.
Mas não desiste, anda-lhe às voltas no pensamento o regresso de Dom Sebastião, real ou imaginário, um chefe que libertasse a Pátria e dá-se então, anos depois, um dos nossos momentos mais genuinamente patrióticos. Como defeito, será isso certamente, tem o de ter sido inteiramente popular, sem o romantismo dos pendões ao vento nem de armaduras reluzentes e por isso a história pouco lhe liga, só quase como curiosidade e sempre com ferrete da imposturice, e o seu protagonista principal adjectivado como aventureiro, aproveitador das circunstâncias, ambicioso e usurpador, como se o que importasse não fosse libertar Portugal de Castela, mas sim a verdadeira identidade de quem o pretendia fazer.
Trata-se de Mateus Álvares, um dos que aparece nomeado sobre a designação geral de falsos Dom Sebastião. No entanto, ao invés dos outros que pretendiam fazer-se unicamente reconhecer como reis para depois exigir os seus direitos à coroa, Mateus Álvares não procura reconhecimentos oficiais, mas unicamente do povo, de onde recruta uma milícias de 1000 homens. Com a corte instalada na Ericeira, então terceira alfândega do reino, destitui os representantes da autoridade castelhana no território que ia de Sintra a Torres Vedras. O seu plano era avançar sobre Lisboa e, a coberto dos festejos da noite de S. João, neutralizar as guarnições militares e restaurar a independência.
Antecipando-se, o governo espanhol reforça a guarda e toma muitas outras precauções enquanto dá ordens para que partisse de imediato de Lisboa uma força “suficiente para dominar a rebelião”, o que aconteceu depois de dois recontros. Os sobreviventes foram enforcados ou condenados às galés. Mateus Álvares depois de enforcado foi cortado em pedaços, colocados depois a cada uma das portas da capital.
Mas antes de ser executado declarara: a minha intenção era entrar em Lisboa na noite de S. João quando todo o povo está na rua e com o seu apoio dominar a guarnição e matar todos que desobedecessem a Dom Sebastião. Apaziguada a cidade, abdicava da minha realeza de empréstimo e diria ao povo:
Olhai bem para mim, não sou Dom Sebastião, mas sou um homem bom, um bom português que vos libertou do jugo castelhano. Agora sois livres, escollhei e proclamei rei quem quiseres.
São homens bons e honrados cavaleiros
São homens de lavoura e misteres,
Eles serãoS na morte os primeiros,
empre que tu, ó Pátria, assim o quiseres!
(António Sardinha; A Grei, in Pequena Casa Portuguesa)
Com Mateus Álvares só havia homens de lavoura e misteres (aqui incluindo pescadores). Também hoje não se vêm príncipes nem barões da República que sejam na morte os primeiros, sempre que a Pátria o quiser, acomodados como estão com o ouro de outros reis, aos cargos e às benesses.
Do vocabulário da nobreza republicana e dos órgãos de comunicação de massas que ela detém em monopólio, desapareceram palavras como pátria, nação e até o sentido de Estado não aparece como emanação do colectivo, mas algo acima dele ao serviço exclusivo dos governos oligarcas, desapareceram as palavras povo e cidadão, substituídas pelas de contribuintes, utentes ou consumidores, conforme a função que circunstancialmente cumprem em cada momento. Até as lojas de nome “do cidadão” são para servir os utentes. Mas de quatro em quatro anos somos honrados com a “dignidade” de votantes, num ritual cuidadosamente encarreirado pelas televisões do sistema.
Ao escolherem o capital financeiro, que não tem pátria, como substância da Nação, não lhes restou alternativa se não negá-la, no que têm sido coerentes.
Para um dignatário do regime, alto responsável pelo Banco de Portugal é necessário separar a cidadania da nacionalidade, escreveu num artigo em 1992 . Para ele neste novo contexto, a ideia de patriotismo deve ser separada da ideia de estado-nação e ideia de cidadania a favor de uma Europa , não de estados nações mas de regiões.
Por terra, a túnica em pedaços
Agonizante a Pátria está.
(Guerra Junqueiro, in Finis Patriae
É igualmente certo que os sinos dos campanários já não marcam o ritmo de vilas e aldeias e nas cidades é coisa que poucos escutam. Uns após outros, pequenos e grandes símbolos, evidentes ou subtis, vão desaparecendo numa azáfama legislativa de convergência, que é modo de dizer aniquilamento da cultura, dos modos de estar e dos saberes fazer em que a singela colher de pau é exemplo de relevo, de fabrico e degradação ecológica, é abatida a favor das poluentes e degradadoras de recursos, sejam de plástico ou metal.
O afã de reduzir o sistema educativo, a todos os níveis, a funcionalidades utilitárias e imediatistas enquadra-se no esforço de aniquilamento do sentimento de nacionalidade.
Paralelamente, no entanto, cada citadino, mesmo nado e criado em grandes burgos, continua a ter uma segunda terra de origem, longe ou perto, na montanha ou no litoral, a dos pais ou avós, a do cemitério de tantos dos seus, da igreja dos baptismos ou casamento ou de partida para a última jornada. É o emigrante que para lá quer voltar, vivo para a velhice ou morto para repousar, pois como observou John dos Passos pode-se tirar um homem da sua Pátria, mas não se pode tirar a Pátria dentro do Homem.
Quando pelo mundo de jeitos diferentes dos nossos é alegria o encontro de outro falante de português como de um irmão se tratasse, por que pela fala se vive a vida das gentes.
Muitas vezes recordo a minha terra Natal
Recordo-a de há setenta ou oitenta anos atrás
...De um poema de Mário Grenjo, com nome só nos triviais papéis, poeta de livro único para amigos, Sou de lá do alto Alentejo, chama-se, e é de Poemas, sonetos, quadras, sextilhas, oitavas e pensamentos, escritos com o coração.
...
Ó Mocidade, oiço os teus passos!...
Beija-a na fronte, ergue-a nos braços,
Não morrerá!
(Junqueiro, Op.Cit)
É de tudo isto que a Pátria terá de ser reconstruída, de todos, sem barões, a cavalo ou a pé. Reerguida do que resta dela na terra e nos poetas e de novo vem a jeito Junqueiro:
A Pátria mais perfeita será a mais local, pelo amor à gleba, e a mais universal, pelo amor ao mundo.
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