sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

"Os Jardins dos Vice-Reis: Fronteira” - Apresentação

via Jacarandá de noreply@blogger.com (António Barreto) em 20/12/08
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COMO DEVO APRESENTAR a Cristina Castel-Branco? Professora no Instituto de Agronomia? Arquitecta paisagista? Só paisagista? Botânica? Historiadora natural? Historiadora de arte? Qualquer dos epítetos, qualquer das designações lhe serve. E não receio de as utilizar todas, quite a desencadear uma destas lutas corporativas de classificação profissional. O que eu prefiro, acima de tudo, é Jardineira! Gosta de árvores, de plantas, de flores e de jardins. Estuda-os. Faz-lhes a história. Trata deles. Cuida das plantas. Desvenda-lhes os segredos. Restaura e conserva jardins, como fez com o da Ajuda, em Lisboa, a quinta das Lágrimas, em Coimbra, ou este Fronteira, em Lisboa. E faz mesmo jardins, como é o caso do Garcia da Orta, na EXPO de Lisboa. Além de escrever livros, como este agora dedicado ao Jardim Fronteira, o primeiro de uma série sobre os quatro jardins dos Vice-reis.
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Mas Jardineira será, como o foi Adão, o primeiro, segundo nos diz Shakespeare, pela voz de Henrique VI.
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Esta nossa Jardineira escreveu em tempos a biografia académica de Avelar Brotero, um dos maiores cientistas portugueses, do seu tempo e do nosso. Brotero que foi, no início do século XIX, director do Jardim Real do Palácio da Ajuda. Curiosamente, Cristina foi sua sucessora. Não imediatamente, mas, quase dois séculos depois, veio ela a assumir as mesmas funções que, outrora, o mestre. A Avelar Brotero, temos a agradecer o seu inesgotável interesse pelas plantas, o estudo científico das mesmas, a divulgação das espécies portuguesas e estrangeiras, o intercâmbio com dezenas de escolas, academias e jardins do mundo inteiro, a importação de espécies de outros continentes e a respectiva adaptação ou aclimatação a Portugal. E eu, pessoalmente, tenho a agradecer-lhe ter introduzido ou aclimatado o Jacarandá!
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Este livro é sobre o Jardim de Fronteira, adjacente à quinta e ao Palácio do mesmo nome. Nada aqui resumirei, pois o livro diz tudo. E fá-lo de maneira rigorosa, exaustiva e elegante. O anfitrião, Fernando Mascarenhas, que também é o proprietário e o descendente de uma longa dinastia de Mascarenhas, redige o prefácio, emite reservas e parece não concordar ou duvidar de ideias da autora. Creio que é uma das raras vezes em que um prefácio critica directamente o livro que encabeça. É insólito, mas interessante. Mostra a liberdade com que ambos encararam a realização deste livro.
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O livro não é só sobre esse jardim. Tem capítulos muito interessantes sobre as origens de certos jardins, sobre a sua história e sobretudo sobre o enquadramento e o contexto em que certos jardins foram concebidos e construídos. Este é o primeiro de uma série de quatro, na qual a autora nos promete estudar e contar a história dos quatro jardins ditos dos Vice-reis.
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Cristina afirma que os jardins são obra de arte, ponto importante. Aparentemente banal, tal afirmação tem enormes consequências (ou deveria ter...), designadamente no campo das políticas de protecção do património. Por outro lado, sugere interrogações difíceis. Com efeito, um jardim também é uma obra de arte parcialmente viva, que evolui, que pode mudar com o tempo e com a acção dos homens. Ora, o próprio da obra de arte material é a sua fixidez, o seu acabamento. Temos assim que, nas obras patrimoniais, existe uma evolução que, na maior parte dos casos, depende dos homens, e que, nos jardins, depende também da natureza. Mas, para as políticas patrimoniais, é importante que esta característica artística seja reconhecida e que os jardins não sejam considerados apenas como apêndices de obras construídas. Nem como sítios e locais que se podem construir, manter ou destruir a bel-prazer.
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Cristina diz ainda que os jardins, a sua concepção, a sua forma, a sua função e a sua organização traduzem as circunstâncias históricas, sociais, políticas, culturais e artísticas do seu tempo. É a esse trabalho que ela se dedica meticulosamente neste livro. No caso dos jardins de Fronteira, a autora sublinha o seu carácter específico. Para além das influências estrangeiras (italiana e francesa), o que está presente nitidamente na obra em estudo é a sua posição charneira entre o Ocidente e o Oriente. Os temas marítimos e náuticos, assim como as inspirações orientais, estão indelevelmente presentes naqueles jardins. A dinastia dos Vice-reis Mascarenhas é evidentemente uma chave para explicar o facto. Indo mais além, a autora sugere uma inspiração camoniana na concepção do jardim. Mais ainda, pelas suas transformações e reutilizações, estes jardins estão também ligados à ideia de Portugal como país independente, tendo sido mostrados e tratados, no século XVII, como forma de cultivar tal aspiração.
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É muito interessante ver como a jardinagem, a ciência e a estética se conjugam e traduzem as forças de uma sociedade, os seus conflitos e os seus sonhos. Não só na história do jardim, como também, por exemplo, na biografia de Avelar Brotero, a autora mostra bem como a ciência e o exercício de uma profissão acabam por estar influenciados pela sociedade mais geral, pelas lutas políticas e pessoais, pelos conflitos e pelas modas dominantes.
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O livro é formidável pelo que nos revela. Mostra um jardim como produto de uma concepção prévia. A autora chega a falar de "jardim esculpido", não apenas plantado. Mostra-nos como, num jardim, se descobre o seu autor e, neste, o pintor, o escultor e o arquitecto. Leva-nos pela mão, passo a passo, para nos ajudar a perceber o porquê de um bucho, de uma fonte, do arranjo das eras, do jogo de linhas visuais e da organização tanto telúrica como vegetal. A rega dos Mouros, o desenho italiano, a construção francesa, os motivos orientais e a gesta marítima cruzam-se nestes jardins, acabando por resumir metaforicamente a história e a posição de Portugal no mundo. Mau grado as influências externas, poderosas, há traços específicos que os portugueses inventaram ou concretizaram. O uso do azulejo, por exemplo. Ou a releitura das influências mouras e orientais, muito antes da grande moda do orientalismo do século XIX ou talvez dos finais do século XVIII. Fronteira é um jardim muito mais antigo que essas modas. Precede-as de dois ou três séculos. Este facto foi para mim surpreendente. Fronteira e mais três jardins (curiosamente todos de Vice-reis) têm quatro ou mais séculos de existência, o que parece ser raro no mundo e pelo menos inesperado em Portugal.
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Como em quase tudo o resto, os jardins portugueses mais interessantes, ou mais famosos, foram resultado de influências estrangeiras. Nos séculos XVI e XVII, aquelas foram italianas e francesas. A que se acrescentavam inspirações orientalistas. Mas, pelo que nos ensina Cristina, e outros com ela, há algo de português, há um contributo próprio que ultrapassa e enriquece a influência estrangeira. Esse contributo não é apenas o da épica camoniana, que parece ter sido inspiração, nem o da independência nacional, que parece ser glorificada. O cruzamento de influências, a sua mistura imaginativa e o respectivo desenvolvimento acabam por ter um papel criador.
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A comparação entre dois contemporâneos, Fronteira e Versailles, sugerida por Cristina, mostra bem as diferenças de concepção, de poder e de intenção de cada jardim e de cada Estado. Apesar de terem data de nascimento parecida. Foi à luz dos ensinamentos de Cristina que fui capaz de recordar alguns dos mais belos jardins que visitei. Os de Alhambra, evidentemente. Os de Blenheim, do século XVIII, feitos por um formidável colega da Cristina, Capability Brown. Os pequenos jardins do Palais Royal, em Paris. Ainda na capital francesa, o Jardin des Plantes, de que Cristina tanto fala no seu livro sobre Brotero. Os fabulosos Kew Gardens, de Londres. Os inesperados jardins de São Miguel, nos Açores (de José do Canto, de Jácome Correia, de António Borges e de Thomas Hickling). O Central Park, de Nova Iorque. O da Estrela, em Lisboa. O da Gulbenkian, com certeza. Em Lisboa ainda, o Botânico, o das Necessidades, o da Ajuda e o Tropical. E o do Tourel, que já não é o que era. Os da Bacalhoa, do Buçaco ou de Monserrate. Serralves e o parque da Cidade, aqui no Porto, sem esquecer a Cordoaria, que já conheceu melhores tempos. Ao recordá-los, agora, com a sabedoria que a Cristina me empresta, consigo fazer uma nova leitura, como ela diz. E perceber melhor por que fizeram e como fizeram estes jardins e parques.
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Uma árvore não é uma obra de arte. Um jardim pode sê-lo. A beleza e o sublime não são exclusivos das artes humanas, podem vir da natureza, com a ajuda dos humanos. Sossego, deslumbramento, sombra, oxigénio, vida animal, até sons podem vir das árvores. Tudo isso mais descanso, tranquilidade, passeio, convívio e até cultura podem vir dos jardins. Sem falar no puro prazer estético. São os países desenvolvidos, educados, decentes, cultos que cuidam das árvores e dos jardins.
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A este propósito, o Portugal contemporâneo é ingrato. Quem sabe se não será também ignorante. Os portugueses não cuidam dos jardins, das árvores ou das florestas. Ou cuidam pouco e mal. Dizem gostar, pois claro, mas arrancam-nas à primeira oportunidade. Casebre ou prédio, vivenda ou ginásio, estrada ou rotunda, escola ou fábrica, tudo é motivo para se arrancar uma árvore centenária ou uma promessa de jardim. As árvores urbanas, sobretudo, são mal cuidadas em geral. Sofrem da seca, da poluição, do estacionamento, da porcaria e da falta de tratamentos.
Sinal seguro do pouco interesse dedicado às plantas é o facto de não termos ainda literatura suficiente sobre as árvores, os jardins e as florestas em Portugal. Houve várias tentativas, há trabalhos notáveis, mas estamos longe de poder comprar manuais e guias claros e interessantes para laicos e amadores. Há para restaurantes, hotéis e vinhos, mas as árvores vêm depois, muito depois.
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A ser verdadeira a tese de Cristina sobre o modo como os jardins retratam ou traduzem o espírito do tempo (e, além do espírito, a política, a filosofia, a estética, as relações sociais e de poder...), e eu subscrevo o que ela diz, então que dizer dos jardins modernos portugueses? Não creio, infelizmente, que a democracia fique muito bem representada no elenco das obras de arte jardinadas! O império da economia e das finanças, as vicissitudes dos défices públicos, as prioridades fantasiosas das autarquias e o simples e ordinário descuido das autoridades e, tantas vezes, dos cidadãos, fazem com que os nossos jardins modernos sejam, em geral, tristes e vulgares. Ou então, recuando um pouco, exibem uma monumentalidade duvidosa, como é o caso do parque Eduardo VII. Talvez tenhamos, aqui no Porto, com o Parque da Cidade, um dos melhores, se não o melhor exemplo contemporâneo do que de bom se pode fazer com a natureza em meio urbano.
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Pior do que a falta de criatividade é, no entanto, a incúria. E essa tem sido uma atitude muito frequente das autoridades, dos autarcas e dos proprietários nas décadas presentes. Fazem-se intervenções modernizantes horrorosas de mau gosto e de técnica duvidosa. Não se estuda a história de um jardim e faz-se dele gato-sapato, com design e mobiliários urbano suspeito e incongruente. Mas, sobretudo, não se cuida, ou cuida-se mal do património natural, tanto nas cidades maiores, como nas menores.
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Parece que a sociedade democrática de consumo de massas despreza os seus jardins ou é incapaz de os idealizar e construir. Ocupa-se da praia, das discotecas, dos centros comerciais e dos pavilhões para jovens. Mas o jardim, a mata, o bosque e o parque parecem estar fora das preocupações contemporâneas.
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É verdade que a construção de jardins exige meios, por vezes avantajados. Os aristocratas que os fizeram, no passado, eram gente de poder e recursos. Mas hoje também há ricos, mesmo muito ricos, mas que não brilham pelas suas iniciativas neste domínio.
Será que a beleza feita com a natureza exige um aristocrata? Um poder despótico? Um monarca esclarecido? Uma classe dirigente culta? Talvez. É uma conclusão melancólica, mas não deve andar longe da verdade.


Porto, 16 de Dezembro de 2008

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