Guiné 63/74 - P3718: A literatura colonial (3): A antologia do conto ultrama...
via Luís Graça & Camaradas da Guiné de Luís Graça em 10/01/09
Capa do 1º primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, antaologia organizada por Amândio César
Capa de um livro de João Augusto Silva, um dos escritores que figuram na antologia do conto português ultramarino, organizada por Amãndio César.
Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados
1. Mensagem de 8 de Dezembro, do nosso camarada Beja Santos:
Amândio César (1921-1987) foi, desde sempre, um escritor ideologicamente comprometido com o Estado Novo, tendo desenvolvido actividade como poeta, ficcionista e ensaísta literário (*).
Foi um dos elementos do grupo Poesia Nova, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, onde ganha realce a edição em dois volumes de Contos Portugueses do Ultramar. Deixou-nos uma poesia por vezes muito bela, por vezes caldeada num lirismo de pendor tradicionalista e os seus contos, associados carinhosamente ao Minho onde nasceu, têm um vigoroso recorte neo-realista.
Dedicou um livro de reportagens à Guiné, em 1965 (*), e entre as suas traduções mais importantes há a salientar Kaputt, de Curzio Malaparte, porventura um dos mais importantes retratos sobre a guerra que alguma vez se escreveu.
No primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, a escolha de autores guineenses recaiu sobre Alexandre Barbosa, Álvaro Guerra, Armor Pires Mota, Artur Augusto Silva, Fausto Duarte, João Augusto Silva, Julião Quintinha, Manuel Barão da Cunha e Óscar Ruas.
Concorda-se com a análise que Leopoldo Amado fez no seu ensaio intitulado "A Literatura Colonial Guineense" e publicado na revista ICALP, vol. 20 e 21 (**) , a que já se fez referência: a emergência de um jornalismo na década de 20 do século passado, revelando uma Guiné exótica, uma natureza luxuriante, com dramas amorosos indígenas, tudo dentro de uma idiossincrasia de matriz colonial; a partir dos anos 30 e 40 também do século XX assistiu-se a um surto literário relacionado com o incipiente desenvolvimento económico, estamos na Guiné que tenta a cristianização e a valorização do indígena, isto a par de aspecto etnográficos que são mostrados já num estado de colonização efectiva e de uma colónia onde tudo parece correr bem; o movimento emancipador e a luta pela independência propriamente dita fizeram surgir uma literatura exaltando os feitos militares e o carácter ideológico da dessa mesma luta. A antologia de Amândio César reflecte essas sucessivas ondas.
Alexandre Barbosa, natural de Lisboa, fundou o jornal O Bolamense e colaborou no Boletim Cultural da Guiné, tendo sido nomeado membro residente do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. A sua prosa está repassada de episódios da vida africana, é uma bonita prosa portuguesa onde acidentalmente há caçadas, nomes guineenses, detalhes da floresta.
Álvaro Guerra (1936-2002) (***), talvez o nome mais importante dos escritores compilados desta antologia, fez serviço militar entre 1961 e 1963, tendo sido ferido em combate. Os seus primeiros livros reflectem inequivocamente essa Guiné em luta e o seu conto "O tempo em Uane" é uma pequena obra-prima digna de um Salinger ou de Hemingway. Ora oiçam:
"A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam arroz, enterrados na lama e na água estagnada da bolanha que se estendia, na geografia infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água, dentro do qual os negros se dobravam sobre o resto dos débeis caules verdes".
Segue-se um conto de Armor Pires Mota, um escritor nacionalista que continua actuante nos dias de hoje. Dá-nos uma poderosa cena de combate entre os bons e os maus, entre os defensores da nossa pátria e aqueles cujos chefes tiveram a instrução em Praga e Moscovo.
Sucede Artur Augusto Silva (1912-1983), um poeta modernista e um estudioso da África ocidental. Voltamos às histórias indígenas, há fauna em desfile na floresta, tudo num português escorreito, é quase uma história de encantar para branco que nunca foi África (****).
Fausto Duarte (1903-1953) (*****) foi nome importante na literatura guineense e o seu romance Auá é seguramente o livro mais emblemático que se escreveu em toda a literatura colonial até aos anos 50. Fausto Duarte era um homem muito culto e dominava com absoluta segurança a técnica literária mas este seu conto "O mestiço" está muito bem escrito e pouco mais.
João Augusto Silva (1910-?) dedicou-se às artes plásticas, distinguiu-se nomeadamente como ilustrador de livros como comprova o livro "Grandes Chasses-Tourisme dans l'Afrique Portuguese". As suas páginas revelam um gosto cosmopolita e um sentido requintado da descrição mas não se sente alma africana. O mesmo se dirá do contista seguinte, Julião Quintinha, intelectual muito viajado que escreveu sobre a Guiné cheio de curiosidade e para satisfazer a curiosidade alheia.
Manuel Barão da Cunha combateu na Guiné entre 1964 e 1965, está presentemente a refazer todos os seus trabalhos literários, em "O capelão" descreve a presença de um padre que acompanha as forças operacionais fazendo dele a irradiação da tranquilidade que animava todos aqueles que tinham deixado a sua terra natal para defender aquela terra.
Enfim, uma antologia ao sabor do seu tempo (Amândio César publicou em 1969, na Portucalense Editora), há lá páginas muito importantes, registam sentimentos, valores e atitudes que também conhecemos e com quem até convivemos.
_________Foi um dos elementos do grupo Poesia Nova, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, onde ganha realce a edição em dois volumes de Contos Portugueses do Ultramar. Deixou-nos uma poesia por vezes muito bela, por vezes caldeada num lirismo de pendor tradicionalista e os seus contos, associados carinhosamente ao Minho onde nasceu, têm um vigoroso recorte neo-realista.
Dedicou um livro de reportagens à Guiné, em 1965 (*), e entre as suas traduções mais importantes há a salientar Kaputt, de Curzio Malaparte, porventura um dos mais importantes retratos sobre a guerra que alguma vez se escreveu.
No primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, a escolha de autores guineenses recaiu sobre Alexandre Barbosa, Álvaro Guerra, Armor Pires Mota, Artur Augusto Silva, Fausto Duarte, João Augusto Silva, Julião Quintinha, Manuel Barão da Cunha e Óscar Ruas.
Concorda-se com a análise que Leopoldo Amado fez no seu ensaio intitulado "A Literatura Colonial Guineense" e publicado na revista ICALP, vol. 20 e 21 (**) , a que já se fez referência: a emergência de um jornalismo na década de 20 do século passado, revelando uma Guiné exótica, uma natureza luxuriante, com dramas amorosos indígenas, tudo dentro de uma idiossincrasia de matriz colonial; a partir dos anos 30 e 40 também do século XX assistiu-se a um surto literário relacionado com o incipiente desenvolvimento económico, estamos na Guiné que tenta a cristianização e a valorização do indígena, isto a par de aspecto etnográficos que são mostrados já num estado de colonização efectiva e de uma colónia onde tudo parece correr bem; o movimento emancipador e a luta pela independência propriamente dita fizeram surgir uma literatura exaltando os feitos militares e o carácter ideológico da dessa mesma luta. A antologia de Amândio César reflecte essas sucessivas ondas.
Alexandre Barbosa, natural de Lisboa, fundou o jornal O Bolamense e colaborou no Boletim Cultural da Guiné, tendo sido nomeado membro residente do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. A sua prosa está repassada de episódios da vida africana, é uma bonita prosa portuguesa onde acidentalmente há caçadas, nomes guineenses, detalhes da floresta.
Álvaro Guerra (1936-2002) (***), talvez o nome mais importante dos escritores compilados desta antologia, fez serviço militar entre 1961 e 1963, tendo sido ferido em combate. Os seus primeiros livros reflectem inequivocamente essa Guiné em luta e o seu conto "O tempo em Uane" é uma pequena obra-prima digna de um Salinger ou de Hemingway. Ora oiçam:
"A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam arroz, enterrados na lama e na água estagnada da bolanha que se estendia, na geografia infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água, dentro do qual os negros se dobravam sobre o resto dos débeis caules verdes".
Segue-se um conto de Armor Pires Mota, um escritor nacionalista que continua actuante nos dias de hoje. Dá-nos uma poderosa cena de combate entre os bons e os maus, entre os defensores da nossa pátria e aqueles cujos chefes tiveram a instrução em Praga e Moscovo.
Sucede Artur Augusto Silva (1912-1983), um poeta modernista e um estudioso da África ocidental. Voltamos às histórias indígenas, há fauna em desfile na floresta, tudo num português escorreito, é quase uma história de encantar para branco que nunca foi África (****).
Fausto Duarte (1903-1953) (*****) foi nome importante na literatura guineense e o seu romance Auá é seguramente o livro mais emblemático que se escreveu em toda a literatura colonial até aos anos 50. Fausto Duarte era um homem muito culto e dominava com absoluta segurança a técnica literária mas este seu conto "O mestiço" está muito bem escrito e pouco mais.
João Augusto Silva (1910-?) dedicou-se às artes plásticas, distinguiu-se nomeadamente como ilustrador de livros como comprova o livro "Grandes Chasses-Tourisme dans l'Afrique Portuguese". As suas páginas revelam um gosto cosmopolita e um sentido requintado da descrição mas não se sente alma africana. O mesmo se dirá do contista seguinte, Julião Quintinha, intelectual muito viajado que escreveu sobre a Guiné cheio de curiosidade e para satisfazer a curiosidade alheia.
Manuel Barão da Cunha combateu na Guiné entre 1964 e 1965, está presentemente a refazer todos os seus trabalhos literários, em "O capelão" descreve a presença de um padre que acompanha as forças operacionais fazendo dele a irradiação da tranquilidade que animava todos aqueles que tinham deixado a sua terra natal para defender aquela terra.
Enfim, uma antologia ao sabor do seu tempo (Amândio César publicou em 1969, na Portucalense Editora), há lá páginas muito importantes, registam sentimentos, valores e atitudes que também conhecemos e com quem até convivemos.
Notas de L.G.:
(*) Vd. o poste de A. Marques Lopes, de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 – CLXXIII: Informação e Propaganda: os 'grandes repórteres' de guerra, disponível na I Série do blogue > http://www.blogueforanada.blogspot.com/2005_08_14_archive.html
(**) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.
Vd. também:
5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)
6 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3275: Clarificar o conceito de novíssima literatura da Guerra Colonial (Beja Santos)
(***) Vd. poste de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)
(****) Artur Augusto Silva (1912-1983), jurista e escritor, pai do nosso amigo Pepito:
31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)
20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)
(*****) Vd. postes anteriores desta série:
5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)
10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)
(**) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.
Vd. também:
5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)
6 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3275: Clarificar o conceito de novíssima literatura da Guerra Colonial (Beja Santos)
(***) Vd. poste de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)
(****) Artur Augusto Silva (1912-1983), jurista e escritor, pai do nosso amigo Pepito:
31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)
20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)
(*****) Vd. postes anteriores desta série:
5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)
10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)
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