sexta-feira, 4 de abril de 2008

A GUERRA COLONIAL EM 4 LIVROS, TAKE DOIS

Nota Pessoal
Os Cus de Judas de António Lobo Antunes e a Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge não espelham a realidade da vivência ultramarina. São livros escritos por gente da situação de hoje, que alguém apelidou de literatura de alferes, ou seja, a literatura sobre a guerra do Ultramar que surgiu nos primeiros anos após o 25 de Abril. É uma literatura que pretende justificar a retirada e o abandono do ultramar com o argumento de que ali se fazia uma guerra injusta, racista e colonialista, contra os interesses das populações dos territórios ultramarinos, nomeadamente, das etnias africanas, ou que, era inevitável a derrota para as forças armadas portuguesas.
Felizmente que agora vão surgindo algumas obras, escritas já por combatentes ou por historiadores não tão enfeudados ao regime abrilino, que nos dão uma panorâmica não falsificada sobre as razões da guerra e o modo como foi feita. Nestas obras vão surgindo vozes que nos transmitem a heroicidade, o espírito de sacrifício, a dignidade das nossas forças armadas, nomeadamente, das heróicas forças dos recrutamentos provinciais e, vamo-nos dando conta de como o desastre que caiu sobre todo o nosso povo do Minho a Timor poderia ter sido evitado: ganhávamos a guerra em todas as frentes e tínhamos completa razão na guerra que os denominados movimentos de libertação nos moviam. Defendíamos a Pátria contra as investidas estrangeiras de soviéticos, americanos, holandeses, suecos... e cumpríamos os compromissos que assumíramos na defesa das nossas populações. Não é verdade que é impossível ganhar uma guerra de guerrilhas e os ventos da História foram inúmeras vezes vergados pelos povos mais valorosos. E nós estivémos tão perto da vitória, mesmo na Guiné!
Moio

via Da Literatura de Eduardo Pitta em 04/04/08

Hoje no Público:


Mais de trinta anos passados sobre o fim da Guerra Colonial (1961-1975), o interesse por esse período da nossa história recente não esmoreceu. Pelo contrário, traduz-se na edição ou reedição simultânea de vários títulos. Com efeito, no curto lapso de três meses, quatro autores de diferentes proveniências contam os últimos estertores do Império. Por ordem de chegada às livrarias, três romances e um diário: Olhos de Caçador, de António Brito, Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar, Fim de Império, de António Vieira, e Diário da Guiné 1968-1969, de Mário Beja Santos. Cristóvão de Aguiar e António Vieira têm obra literária reconhecida, o primeiro desde os anos 1960, o segundo desde os anos 1990. António Brito, tudo indica, estreou-se agora. Quanto a Mário Beja Santos, a opinião pública identifica-o como especialista em direito do consumo.

Contrariamente ao que muitas vezes se diz, a guerra colonial não é tema omisso da literatura portuguesa. Do lado da poesia, as obras de Rui Knopfli, Manuel Alegre e Fernando Assis Pacheco chegam e sobram para desmentir a asserção. Do lado da ficção, a lista de títulos e autores tem de ser multiplicada várias vezes. E se para os anos anteriores a 1974 apenas retenho dois nomes, os de Álvaro Guerra e Modesto Navarro, com Memória (1971) e História do soldado que não foi condecorado (1972), respectivamente, a partir desse ano torna-se necessário triar a bibliografia. Por melhor conseguidas, destaco as obras de José Martins Garcia, Almeida Faria, Olga Gonçalves, António Lobo Antunes, Ascêncio de Freitas, Guilherme de Melo, Wanda Ramos, Carlos Vale Ferraz (um nome exterior à literatura, cujo romance de estreia, Nó Cego, de 1982, depressa o impôs como referência no género), João de Melo, Mário de Carvalho, Álamo Oliveira, Fernando Venâncio, Lídia Jorge e Domingos Lobo. A citação não é arbitrária: obedece à cronologia da inscrição do Leitmotiv. Nos livros que escreveram sobre a guerra em África, e alguns fizeram-no mais de uma vez, foram vários os modos como a luta de libertação das antigas colónias foi percebida em Portugal.

Verdade que nem todos o fizeram a partir de experiência no terreno, privilegiando o acto bélico e o proselitismo independentista. Casos há em que a guerra é um tropo. Isso distingue o espectro do enfoque. Tudo distingue Autópsia de um Mar em Ruínas (1984), de João de Melo, de A Costa dos Murmúrios (1988), de Lídia Jorge. Em todo o caso, pode-se estabelecer um padrão. Escritos, na sua maioria, por autores de esquerda, estes livros caracterizam-se pelo ajuste de contas com o salazarismo, assacando culpas à teimosia e ao imobilismo do Estado Novo. Nos catorze anos que durou, nesse longo intervalo de equívocos e perplexidades que mobilizou mais de meio milhão de homens (em Abril de 1974, andaria perto de 170 mil o número de efectivos militares nas frentes de combate de Angola, Guiné e Moçambique), muita coisa mudou na sociedade portuguesa. Porém, o que paira sobre a evidência da guerra, e razões correlatas, é o estorvo de uma geração adiada: estudos interrompidos, emigração forçada, famílias desfeitas, dissensões e prisões.

O que muda na representação literária do conflito é a sua actual desideologização, menos nítida em Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (n. 1940), reedição de um título de 1990. Isento de retórica, o romance segue uma linha convencional, com apontamentos laterais sobre usos e costumes dos povos da Guiné, tais como, por exemplo, a excisão do clítoris às raparigas. O quotidiano militar é relatado com precisão: «O guia já está morto. Mataram-no a pontapé. Coices na cara, no tronco, nas partes baixas. O tronco transformou-se num enorme e alucinante coágulo de sangue ainda a coalhar-se...» O distanciamento do narrador empresta à narrativa uma secura exemplar.

Mas se Cristóvão de Aguiar não investe na metáfora, o mesmo não pode dizer-se de António Vieira (n. 1941), que nos dá em Fim de Império um quadro vívido da borrasca imperial. Vieira domina bem o discurso mnemónico, o jogo intertextual e a polifonia romanesca: os «crânios despedaçados» das lagostas têm a força da premonição. Nem o plot dispensa a geopolítica, nem os personagens dão um passo sem caução histórica. Tudo se passa em Angola, território enquadrado no contexto de interesses mais vastos, que são parte da intriga. De um ponto de vista estritamente literário, Fim de Império, memórias ficcionadas de um médico ao serviço do exército, sobressai no conjunto. Nicolau, o narrador, mostra «as personagens por fora tal como as intuía por dentro». O método é exigente: o «problema central é transmigrar as pessoas para a ficção, tirar-lhes uma gota de essência, uma só gota — e então transformá-las em novas criaturas envolvidas no enredo.» Mais do que descrever episódios avulsos, o que também faz com desembaraço, Vieira reflecte sobre os vários porquês da colonização.

Nos antípodas está o romance de António Brito, Olhos de Caçador, narrado na primeira pessoa. Este thriller em cenário de guerra conta a história de Zé Fraga, um pequeno contrabandista alistado à força para Moçambique no final dos anos 1960. Salvo o intróito, no presente (com Zé Fraga na condição de sem-abrigo, obrigado a procurar comida nos contentores de lixo dos supermercados), e os capítulos finais, após o regresso de África, as mais de quatrocentas páginas do volume ocupam-se da guerra propriamente dita. Nenhum pormenor, por mais escatológico, é poupado. Zé Fraga, o reguila típico, avesso a qualquer hierarquia, vai parar a Magolé, na província do Niassa (norte de Moçambique). Uma terra de ninguém, com a neblina colada ao chão e os dias ao som de morteiradas. Não se lembra já de quando matou um homem pela primeira vez, «a incredulidade do filho da puta em que enterrei a navalha varando-lhe as tripas.» Agora está rodeado de cadáveres: «Havia-os limpos, sujos, arrumados, esventrados, desmembrados, sórdidos, em putrefacção, inchados, grotescos, desalinhados ou simplesmente com gusanos e formigas a entrar pelas narinas e a sair pela boca. Um nojo. Um cadáver é uma coisa feia de se ver, mesmo quando é do gajo com quem uma hora antes bebemos uma bejeca e fumámos um cigarro.» Zé Fraga tem um código de conduta próprio. Regressa a Portugal com uma perna amputada, amiga-se com Filomena (a enfermeira que tratou dele em Nampula), e os dois abrem em Lisboa uma clínica de reabilitação para amputados das forças armadas. O negócio corre bem até ao 25 de Abril. Depois, o momento político inviabiliza a renovação dos contratos com o Estado. A clínica sobrevive à custa da secção de massagens: «durante uma hora, em total privacidade, [os amputados] acediam aos serviços de uma puta experimentada». Um jornalista afoito tenta meter o bedelho no negócio, um antigo capitão regressa para vingar-se, há um crime (mais um, desta vez sem o álibi do fogo amigo), a história não tem um fim feliz. Mas está bem esgalhada.

Mário Beja Santos (n. 1944) fez outra coisa. Verteu em diário os anos que passou na Guiné. O primeiro volume, agora publicado, vai de Agosto de 1968 a Agosto de 1969. Um segundo volume, a publicar, irá até Setembro de 1970. Beja Santos regista com impressionante minúcia os dois anos passados na terra dos Soncó. Quando e como chegou, quem era quem, intendência, o que cada um fazia ou deixava de fazer, logística, circunstâncias, humores, leituras, músicas, conversas, correspondência (com a mãe, a namorada, amigos, entre eles o poeta Ruy Cinatti), desabafos, anedotas, patuscadas, micoses, alergia ao línquen, distribuição de arroz à população civil, investidas de abelhas, acidentes fortuitos, enfim, a vasta soma dos dias. Nada escapa ao crivo do autor, que, nos agradecimentos, dá conta de quem o ajudou a reconstruir a memória: companheiros de tropa, que esclareceram «episódios turvos ou mal sedimentados»; o amigo que «processou este texto do princípio ao fim, aguardando discretamente, em tantos momentos, que eu recuperasse das emoções, já que várias vezes lhe ditava a soluçar ou com a voz embargada»; a namorada, que guardara «as centenas de aerogramas e cartas» que ele lhe escrevera. Numa dessas cartas, de Abril de 1969, Beja Santos relata um episódio de 1915, de que acabara de tomar conhecimento, envolvendo autoridades gentílicas e militares portugueses (dos quais 17 foram feitos reféns). Andava a ler Espera de Deus, de Simone Weil, mas o cansaço provocado pela «montagem do forro dos abrigos, onde depois metemos cimento», deixa-o sem ânimo para falar da obra. A carta inclui um «arremedo poético que não mostrarás a ninguém», e termina com uma má notícia: «as mulheres dos soldados e milícias foram até à fonte de Cancumba e, quando estavam a espalhar a roupa a corar, explodiu uma daquelas armadilhas que o Reis montou à volta. A mulher do soldado Dauda Seidi teve de ser evacuada com o peito todo estilhaçado.» Impresso em capa dura, o volume inclui dezenas de fotografias, bem como um glossário de siglas militares, termos nativos e gíria de caserna. Em apêndice, uma listagem exaustiva dos livros e discos que o autor leu e ouviu nesse período: de Agatha Christie ao Corão, passando por Alves Redol e Emily Brontë, ao som de Wagner, Verdi, Mozart e outros. Não conheço nenhum diário sobre a guerra colonial portuguesa com este grau de minudência.

A literatura sobre a guerra de África é hoje um subgénero da literatura portuguesa. As principais contribuições surgiram entre 1975 e 1993, continuando muito forte a tendência para a restringir a dois autores: António Lobo Antunes, que escreveu sobre a guerra em Angola mais de uma vez; e Lídia Jorge, sobretudo desde que, em 2004, Margarida Cardoso adaptou A Costa dos Murmúrios ao cinema. A extrema visibilidade de ambos potencia a recepção alargada de que gozam, deixando na sombra alguns títulos paradigmáticos, como Lugar de Massacre (1975), de José Martins Garcia, obra que urge reeditar, ou Os Navios Negreiros não sobem o Cuando (1993), de Domingos Lobo. Não estamos a falar de uma literatura do ressentimento. Estamos a falar de obras que, melhor ou pior, lêem (e, portanto, explicam) a nossa contemporaneidade. Não podemos fingir que a guerra não existiu, nem fazer de conta que estes livros são irrelevantes.


Tempo de Cicatrizes, in Ípsilon, dossier sobre a guerra colonial, 4-4-2008, pp. 10-11.

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