domingo, 4 de maio de 2008

O menino Xico

via A Defesa de Faro de adf2006 em 04/05/08
Nasceu puro e continuou, pela vida fora, mantendo a ingenuidade de menino, com um sorriso amplo, olhos brilhantes de alegria a transmitirem aos outros, que a vida deve ser encarada de maneira singela e descontraída.
Nunca perdeu essa vontade de rir, pondo a alma a descoberto com humildade sem ser submisso, com despreocupação mas sem descuidos.
Vivia o presente como uma dádiva diária, esquecido do passado e sem se preocupar com o futuro, acreditando, plenamente, no poder dos sorrisos, da dança, da música. Era aí que ele encontrava a sua verdade, o seu sentido de justiça, de paz, de sonhos, de imaginação…e construía os seus castelos.
Não era ambicioso, a sua vida era simples, sem complicações, ganhava o dia a dia como moço de fretes vivendo na bendita ignorância da competição e afastado das preocupações e dos aborrecimentos causados pelo desejo de subir na vida, atributo abraçado por todos os homens.
Quando jovem vivia na R. da Madalena e procurava trabalho na Estação dos caminhos de ferro, no Largo das camionetas, nas barcas da doca, no largo onde hoje está o Hotel Eva, local dos carroceiros de mudanças, nas tascas, nas pensões, em casas comerciais…
Carregava nas costas ou à cabeça tudo o que lhe encomendavam, mantendo o seu passo gingão e o infindável sorriso, que lhe escancarava a boca.
Um dia, vi-o carregando à cabeça um divã de molas, mantendo as suas passadas dançantes. Tinha de parar constantemente, porque o balanço que imprimia, produzia na carga um sobe e desce tão forte, que o divã quase voava.
Andava limpo, vestido com camisa, casaco e calças tendo o hábito de as arregaçar, dobrando-as até meio da canela, e tanto aparecia calçado com alpercatas de lona, como descalço.
Ganhou um boné de moço de fretes que usava, exibindo-o como uma relíquia.
Durante o dia cirandava pela baixa da cidade, transbordando para os outros a sua felicidade de viver, mostrando que ser feliz, é o maior presente que se consegue na vida.
Ao entardecer ajudava no Jardim de S. Pedro e ruas circundantes, a acender os candeeiros de iluminação pública.
Ia a seguir sentar-se no poial de uma casa, em frente aos correios antigos, na R. do Alportel. Normalmente, a mãe da Ana Vitória (moradora no local) dava-lhe um bom naco de pão com banha corada, que o Menino Xico saboreava, lentamente, com infinito prazer, até à última migalha.
Ficava aguardando que o convocassem para ir buscar as sacas da correspondência, para as colocar numa carroça puxada por uma mula. Cada saca tinha a sua tabuleta de madeira, indicativa do destino. Seriam transportadas para a Estação do caminho-de-ferro, para serem levadas no comboio-correio que passava em Faro, pelas 22 horas.
Enquanto esperava, o menino Xico, entretinha-se a fazer o seu cigarrito aproveitando o tabaco das beatas que encontrava.
Ao longo do dia, várias vezes, impunha essa tarefa de prazer, tendo quase permanentemente, um cigarro muito "magrinho", feito por ele, ao canto da boca.
Foi sentado no poial dessa casa, em frente dos Correios, na R. do Alportel, que o menino Xico, que tinha música no coração, iniciou o seu toque de castanholas, com as tabuinhas das etiquetas das sacas da correspondência.
Enfiava nas tabuinhas um fio para fazer as suas castanholas, e aos poucos ia batendo, ensaiando, valorizando, diversificando os toques.
Com o tempo, bastava-lhe ouvir uma música para conseguir acompanhá-la, marcando o ritmo, com as tabuinhas.
Começou a associar à música a dança, e era vê-lo gingando, dançando, tocando as suas castanholas, dando estalos com a língua, assobiando numa entrega absoluta e em completo delírio. Nesses momentos, se tinha ouvintes que o provocassem, entusiasmava-se e repetia, incansavelmente, a música e a dança.
Não esqueço, quando descalço, o movimento que imprimia aos dedos dos pés, abrindo-os, batendo os calcanhares no chão, e reproduzindo com eles o ritmo da música, que tocava com as castanholas.
Não sabia dialogar, não conversava, não dominava o vocabulário, utilizava frases curtas e simples, a sua comunicação era gestual, mimando sentimentos…
Cheguei a pegar nas tabuinhas do menino Xico a tentar imitá-lo, sem conseguir mais do que uns estalidos. Então, cheio de gozo, ria, gargalhava inundado de felicidade por descobrir que só ele conseguia retirar sons mágicos às suas tabuinhas.
Era louco por futebol e pelo Farense. Vibrava durante os jogos, num entusiasmo infantil com pulos e saltos, nos momentos de vitória.
Mas, se o Farense perdia, o menino Xico, virava fera e perdia o seu sorriso de alegria, pois para ele

"O FARENSE ERA O MELHOR DO MUNDO"

Nota: Uma das minhas filhas, de 40 anos de idade, ao ler esta crónica, diz:
- Mãe, o menino Xico não é o homem que a conhecia e quando nos encontrava dançava e tocava tabuinhas? Era velho, só tinha um dente na enorme boca que abria, a rir-se cheio de alegria…Gostava imenso de o ver!
Era o menino Xico, velho de corpo, com a mesma alma, a dividir com os outros a sua felicidade, acreditando no poder do sorriso…

Lina Vedes – 1 de Maio de 2008

para ver duas breves actuações do menino chico aqui.

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