quarta-feira, 26 de maio de 2010

Crónica do nosso descontentamento


Um texto de Vera Lúcia

Estou farta! Na realidade, estou mesmo farta! Eu e milhões de portugueses. A actuação do Governo é, indubitavelmente, marcada por amargas realidades das reduções orçamentais e, principalmente, reviravoltas políticas.

A situação tornou-se de tal maneira grave, que já nem há lugar para promessas, essas mesmas promessas que, durante anos, manteve o eleitorado na expectativa. Entretanto aconteceu uma proverbial e oportuna crise mundial, que justifica tudo. Não se lembram, isso não, que durante estes anos, o grupo de homens que diariamente enchiam as bancadas da Assembleia, tudo processavam sem pressas. Raramente começavam a horas, porque se perdiam pelos corredores em conversas amorfas. Nada de ideias crepitantes. Nada que pudesse perturbar o espírito rotineiro dos debates. Ler mais

Desde a orla das praias douradas algarvias, às paisagens agrestes de Trás-os-Montes, nada era esquecido ali. Falavam nos problemas, encetavam discussões, planeavam soluções, mas tudo calmamente, amadorrados na sonolenta luz do Hemiciclo, esquecidos do País moribundo que agonizava lá fora. Mas é aqui, sobretudo aqui, nas bancadas imensas, no ambiente majestoso dos lustres das paredes magnificamente decoradas, que eles sentem ressuscitar a sua força de poder, a força que lhes dá para pensar que é nas suas mãos que está o destino deste Povo e desta Nação.


Por isso, essa vontade férrea de sobreviver nesses cargos que os faz barafustar uns com os outros, não para encontrarem soluções mas unicamente para se evidenciarem: cada um para parecer melhor, mais entendido, mais dedicado. No fundo, a tentarem transmitir uma ideia que seria escandaloso exprimirem mas que está patente em todas as expressões:”-Olhem aí, vocês que que me escutam. Eu sou o melhor”! É essa vontade de sobreviver ali, que os faz discutir, barafustar, discordar, concordar, falando em tudo que não interessa, enquanto lá fora, o Povo estiola e morre. Porque é só aqui, na majestosa imunidade de S.Bento, que eles se encontram a si próprios. E a fumaça dos charutos que fumam, uns após outros, nos gabinetes luxuosos, formam uma neblina tão densa por cima das suas cabeças, que as suas vistas dificilmente vislumbram horizontes mais longínquos.

Porque antigamente, as fortunas passavam de geração para geração (ou não) dependentes da capacidade de trabalho e gestão dos herdeiros. Hoje, as fortunas herdam-se através de tachos. Porque só com “tachos” se alicerçam e aumentam. Tudo o que estiver fora deste circulo (ora agora governas tu e enriqueces tu, ora agora governo eu e enriqueço eu) é para “inglês ver”.

Hoje, a palavra de ordem para o Povo é: “apertem o cinto!”. É como se estivéssemos embarcados num avião , seguindo as instruções mecanicamente dadas por uma hospedeira afável, enquanto duma fonte ausente se acendem os incómodos letreiros “só desapertar quando as luzes se apagarem”. Não temos outro remédio senão seguir essas instruções, mas depois de meia hora, todos estão fartos de estarem incomodamente amarrados ao banco, e esperam ansiosos, pela liberdade. Imagine-se se fossem obrigados a permanecerem apertados pelo cinto toda a viagem! Mas é isso o que acontece connosco! Até ao fim , a viajarmos de cinto apertado! Dá para acreditar? Mas é claro que para aqueles que viajam em classe VIP, o percurso é muito mais cómodo! E quem são a maioria desses passageiros, quem são? Os nossos políticos , seus tachos/herdeiros e seus seguidores (principalmente aqueles que os mantêm no poder porque dá sempre jeito ter um ministro ou alguém que deve o seu cargo à nossa comparticipação nos custos da sua campanha.

Admiram-se então que os tentáculos da criminalidade se tenham espalhado, ramificado, penetrado na nossa sociedade? Garantir agora que o seu controlo é possível, é absurdo. Porque a situação caótica em que caiu o País, torna inconciliável qualquer objectivo de paz e segurança. Porque em vez dessa melhoria tão amplamente prometida, a verdade é que a situação chegou à ruptura. A inflacção e os impostos paralisaram a actividade. O fluxo cambial dos emigrantes está praticamente, parado. A fome e o desemprego assolam a nação. Já nem promessas há para oferecer! E o pior, é que existe uma fadiga depressiva que se apoderou do Povo. Representa hoje a característica uniforme da sociedade, um sentimento radical e trágico que aumenta assustadoramente, como uma vaga que nenhum obstáculo pode deter. Pior que uma ameaça de morte, é a condenação por uma asfixia lenta que atrofia a mente e o espírito.

Foi nisto que os consecutivos e amorfos Governos tornaram Portugal: Um País em derrocada, uma pequena nação mutilada, migalha caída na mesa do mundo que vive agora as horas mais difíceis da sua história. Mas eles, lá continuam! Jornalistas transformados em Ministros da Defesa, passando de contadores de histórias a especialistas na arte de bem comprar equipamento bélico, de submarinos a aviões, acessores a Ministros da Agricultura sem nunca terem plantado mais do que um pé de salsa nalgum vaso do seu apartamento, ou das Pescas, sem mais nada conhecerem de peixe do que aquele que lhes apresentam num prato bem servido do “Tavares Rico” . Tudo e todos se concentram aqui. Eles e os outros. Porque Lisboa é o exemplo acabado de tudo o que de mau e de bom uma cidade é capaz de produzir. Nos seus bairros superlotados, nos transportes , nos bares, nas esplanadas, milhares de indivíduos de todas as nacionalidades assentam aí arraiais para chorarem as suas mágoas. Fascinante nuns lados, imunda noutros é a cidade de contrastes imprevisíveis de promessas, de esperanças e de desilusões. À porta dos hospitais, dezenas de doentes morrem diariamente por falta de cuidados, enquanto equipamentos médicos sofisticados quedam paralisados por falta de pessoal. Os bancos regurgitam de clientes. Mas, na sua maioria, os seus haveres nem sequer chegam para pagar os juros dos seus empréstimos. Milhares de jovens saem das universidades e morrem de inacção à espera dum emprego, enquanto outros milhares aguardam vaga nessas mesmas universidades, para virem engrossar o número de desempregados. Restaurantes, esplanadas, bares, clubes nocturnos, enchem-se diariamente com milhares de habitantes de todas as camadas sociais. Mas milhares deles dependem da caridade social. É a cidade do pré-apocalipse, onde dezenas de prédios ruem e outros são devastados pelas chamas. Que melhor “habitat” dos nossos “Anjos” do pré-apocalipse?

Vou terminar. Afinal, é humano ter que desabafar. Deixaram esticar de tal forma a corda, que a crise mundial, veio mesmo a calhar! É tão fácil governar assim... E mais fácil ainda é governar uma Nação de parvónios como nós , que fizemos o favor de vos transportar aí para cima, para S.Bento! Santa ignorância!

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