sábado, 12 de janeiro de 2008

AMÍLCAR CORREIA

via Da Literatura by Eduardo Pitta on 1/11/08


Hoje no Público:


O primeiro livro de Amílcar Correia (n. 1966) apresenta-se como sendo de “estórias de África”, o que não significa que seja uma colectânea de contos ou um volume de memórias. De maneira nenhuma. A Balada do Níger é uma colecção de histórias, narradas como se de um livro de viagens se tratasse, num registo que oscila entre a reportagem e o apontamento diarístico, com excepção dos capítulos iniciais (pp. 21-45), espécie de intróito historicista da descoberta de África. O resto, que é o principal, são reminiscências de deambulações do autor, jornalista de profissão. Cada uma das partes em que o livro se divide é antecedida de breve contextualização sociológica e cultural.

A narrativa cede muitas vezes ao envio literário, mas isso não prejudica a desenvoltura do relato. Não diria o mesmo do uso e abuso de certos termos africanos, dos quais escolho dois como exemplo: “gravana” e “macúti”. Relativamente ao primeiro, que não conhecia, e fiquei agora a saber que reporta à estação seca em São Tomé e Príncipe, não me parece eficaz o seu uso como figura de lítotes: «Nessas manhãs sem gravana...». Quanto ao segundo, embora conheça o significado de macúti, sempre disse e ouvi dizer caniço. Precisamente no tocante à ilha de Moçambique, e em concreto à sua ponta negra, «esse buraco [...] abaixo do nível da estrada», era e é designado como “o caniço”. Agora chamam-lhe macúti? Vem ao caso lembrar que Macúti era o nome do bairro mais elegante da cidade da Beira, onde as únicas folhas de macúti eram as das palmeiras dos jardins.

Como muitos autores europeus que escrevem sobre África, Amílcar Correia ocupa-se quase exclusivamente dos desapossados. Não viria daí grande mal ficando claro que esse é um dos lados da história, porventura o mais significativo, mas não a história toda. Como se um finlandês ou um americano reduzissem a realidade portuguesa à população e aos costumes da Jona J de Chelas ou das ilhas do Porto. Há nisto um paternalismo subliminar, porventura involuntário, que a invocação de aspectos mágicos (mitos que a literatura fixou como paradigma da especificidade africana) não redime. Mas nem sempre é assim. A descrição da Joanesburgo actual, uma Manhattan africana «enredada numa teia rodoviária que aproxima e afasta os guetos pretos dos guetos brancos», tem uma inequívoca nitidez. De um lado, a “faixa de Gaza” de Alexandra, subúrbio negro entalado entre vias rápidas, ainda mais miserável que o Soweto; do outro, periferias como as de Sandton e Rosebank, ocupadas pela burguesia negra e a minoria branca, onde o padrão do luxo é medido pelo de Boca Raton e paraísos semelhantes. Na parte relativa à África do Sul, o ar do tempo fica impresso na divisa «um colono, um Prozac...».

Uma das melhores sequências é a dedicada ao Quénia, com remissões para Evelyn Waugh (e, naturalmente, Blixen), apresentado como «turista fleumático», por oposição ao viajante que Bowles seria... Isso distinguiria a escrita de ambos. Não é aqui o lugar para discutir esse curiosíssimo ponto de vista, que aliás não atrapalha as estórias de Amílcar Correia.

O livro inclui um útil glossário de termos gentílicos. E ainda uma Bibliografia essencial em que a grande maioria dos títulos omite a data da edição original. Tratando-se de uma colecção de histórias (ou estórias, como lhes chama Amílcar Correia) que reflectem o ponto de vista do autor, A Balada do Níger dispensa bem a muleta de Ernest Hemingway, Karen Blixen, Paul Bowles, Rui Knopfli e os outros todos. Há também um prefácio de Pedro Rosa Mendes, muito extenso para o fim em vista, com inesperadas derivações timorenses e australianas. Em que é que os aborígenes, e em particular o povo Arrenrte (visto sob o prisma de Durkheim, Lévi-Strauss, Freud, Malinowski, Lindqvist e outros), têm que ver com as histórias de Amílcar Correia? Os juízos temerários do prefaciador também não ajudam: «O conceito aborígene de viagem como relato simultâneo e criador de um território implica o acto mesmo da fundação da identidade. E põe em marcha a transcendência do indivíduo do seu tempo biológico, através da narração do espaço, atravessando gerações.» Signifique isto o que significar, é o contrário da escrita escorreita de Amílcar Correia.


Estórias no fio da História, in Ípsilon, 11-1-2008, pp. 40-41. Três estrelas e meia.

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