sábado, 6 de junho de 2009

O especialista em ouvir conversas alheias

via Ciberescritas de admin em 26/05/09

Entrevista Marçal Aquino

Isabel Coutinho

Tudo começou quando uma revista pediu ao escritor brasileiro Marçal Aquino um conto. Ele escreveu a história de dois pistoleiros que num parque de diversões se preparavam para "matar um sujeito". Era "uma tocaia", "uma emboscada em que o cara fica ali vigiando para escolher o melhor momento de atacar."
Os dois pistoleiros estavam numa cidade do interior brasileiro atrás de um piloto de avião que iam matar. Mas o escritor não sabia o que é que o piloto tinha feito ou se eles o iam efectivamente matar. "Tanto que o conto termina sem que eles façam algo", explica Marçal Aquino que esteve em Matosinhos a participar no LEV - Encontro de Literatura em Viagem.
Só que quando acaba de escrever este conto - que nunca chegou a publicar - o escritor percebe que quer saber o que está por trás daquela história e recomeça a escrever. Fecha-se em casa e durante 54 dias escreve sem parar porque a história começa a aparecer-lhe de "uma forma muito veloz". Assim nasce "Cabeça a Prémio", romance que publicou no Brasil, em 2003, e que acaba de ser editado pela portuguesa Quetzal.
"Eu não teria tempo para tocar esse livro em três anos. Se eu levasse três anos a escrever 'Cabeça a Prémio' não o teria escrito."
A vida de Marçal Aquino, 50 anos, transtornou-se. Escrevia de manhã, à tarde e à noite: chegava a escrever 17 horas por dia. "'Cabeça a Prémio' saiu desse embrião e a história se mostrou para mim do jeito que está publicada. Ela tem um desarranjo temporal, ela avança, recua, avança, recua, mas não é nada pensado. É assim que a história me apareceu", explica.
Quis contar uma história de amor num ambiente absolutamente hostil, um mundo de traficantes. Aliás, "Cabeça a Prémio" cruza duas histórias de amor. Uma delas acontece entre Brito e Marlene - duas personagens "absolutamente à margem de tudo" que, para serem felizes, não podiam ter ciúmes uma da outra. Ela é uma "cafetina", uma dona de bordel, e ele é um pistoleiro, um matador. Para conseguirem viver juntos fazem "um pacto maravilhoso": "eu não vou perguntar sobre o seu passado, não pergunte sobre o meu presente." Mas, mesmo numa relação "tão acordada, tão feita de acordo, o ciúme acaba envenenando tudo", explica Marçal Aquino, que quando estava a escrever o livro se deparou com uma outra história de amor. A de um piloto, Dênis, que se envolve com Elaine, a filha do traficante para quem ele trabalha e ela fica grávida. "Esta história acabou sendo o eixo narrativo mas no início eu não tinha ideia de qual era a história do livro. Tal como o leitor, quando escrevi o livro, também estava na ignorância. Não sabia bem o que era aquilo. Sabia que estavam atrás de um piloto, não sabia porquê. Mas quando avanço na história vou descobrindo e fica claro: ele tem uma história com a menina e eles fogem." O escritor foi encontrando toda a trama à medida que ia escrevendo, tal como acontece com o leitor quando está a ler este livro. "Não tem nenhum jogo, não tem nenhuma armação. No livro policial se prepara o enigma de modo que o leitor só vem a descobrir na hora certa. 'Cabeça a Prémio' é anti-climático. Termina antes. Tem uma espécie de coda. São jogos que fui estabelecendo e descobrindo à medida que ia escrevendo."
Para escrever este romance, em que uma quadrilha de traficantes domina uma certa região do Norte do Brasil e faz contrabando de droga com pequenos aviões que pousam em pistas clandestinas, Marçal Aquino inspirou-se na realidade brasileira. O mesmo se passou com a personagem do piloto. "Existem. Normalmente são pilotos que não conseguem fazer carreira na aviação comercial e vão trabalhando para traficantes."

Pistoleiros de aluguer

Esta preocupação com o real está muito presente na sua obra. Considera-se um escritor "realista". Foi por causa de uma reportagem que foi fazer, ainda na década de 80, na zona de fronteira do Brasil com o Paraguai, que tomou contacto com o universo dos pistoleiros de aluguer e ficou fascinado. Fez parte do grupo de escritores que nos anos 80 trabalharam em São Paulo no "Jornal da Tarde". Abandonou-o em 1990. "Trabalhei num jornal que era o meu sonho. Dava tratamento literário para as matérias, para os textos e valorizava as imagens de uma forma muito diferente. Era um jornal muito bonito graficamente, e ousado." Era "uma delícia" ser repórter. Aquino era repórter policial e quando ia cobrir um crime, o editor pedia-lhe: escreva uma novela policial.
Quando se tornou jornalista "freelance", passou a ter mais tempo para se dedicar à literatura e acabou por ir parar ao cinema. A verdade é que nunca quis trabalhar como argumentista porque achava que em matéria de actividade economicamente inviável já lhe bastava a literatura. "Não precisava de me meter com o cinema", diz a brincar, mas a sua prosa sempre foi considerada "cinematográfica" e as suas narrativas visuais. Não concorda quando dizem que essa prosa visual está relacionada com o seu trabalho de argumentista. "Sempre esteve presente na minha literatura. Desde os meus primeiros livros essa é uma marca da minha literatura."
A sua narrativa é muito visual porque o cinema entrou na sua vida antes da literatura. A primeira vez que o levaram ao cinema tinha seis anos, "nem alfabetizado era" e quando viu "aquela tela" ficou apaixonado.
"Cabeça a Prémio" foi adaptado ao cinema (o filme está em pós-produção no Brasil) como muitas das suas obras. Actualmente, Marçal Aquino tem um livro parado porque está a escrever com Fernando Bonassis o argumento da série policial "Força-Tarefa" em exibição na Globo.
"Não consigo trabalhar de dia no seriado e chegar à noite, desligar, e voltar para o meu livro. O meu livro exige um mergulho. Então tenho uma novela parada. É uma novela que não sei direito o que é ainda."

O espião

Marçal Aquino é um andarilho. Nem carro tem. Anda pela cidade. "Sempre olhando, sempre anotando frases." Precisa de estar sempre em movimento e o que lhe interessa são as pessoas. "Afinal é para as pessoas que eu escrevo", diz.
Sempre se interessou por vidas marginais. Afirma que São Paulo é "um cinema a céu aberto, ininterrupto". Se prestarmos atenção, vemos maravilha e miséria. As duas existem no mundo quotidiano. Tanto o acto de violência, quanto a poesia. "Então você precisa de estar de olho e de ouvido aberto. Essa coisa de ser andarilho, sempre me facilitou."
E é especialista em "ouvir conversa alheia". Já lhe aconteceu dar por si a seguir gente na rua. Hoje em dia é mais difícil porque as pessoas o reconhecem e já sabem que é escritor. Mas o jornalismo ensinou-o a ouvir sem ser visto.
"Já me aconteceu ver um casal brigando, discutindo, e segui-lo por quarteirões e quarteirões." Isso deu em alguma coisa? "Eu queria saber o motivo da briga - como se houvesse um motivo aparente de uma briga de casal. Enfim, tinha essa ilusão de que ia entender o que estava acontecendo. Bem no momento em que parecia que eles iam falar o motivo, entraram num edifício e fecharam a porta. Eu fiquei para fora. E percebi, claro, vou para casa e vou inventar esse motivo. Então aí eu fiz literatura, deixei de fazer jornalismo."
"A revolução tecnológica de certa maneira me prejudicou porque antigamente o Brasil tinha muita linha cruzada de telefone. Eu adorava quando tirava o telefone e tinha alguém conversando. Ficava ouvindo." Porquê? "Pelo extremo sabor que têm os diálogos. Como é difícil escrever um bom diálogo, um diálogo natural. Sempre digo que cansei de ver no cinema brasileiro um sujeito sair correndo atrás de um 'trombadinha' que tomou a carteira dele a gritar: 'Peguem-no! Peguem-no!'. Ninguém grita: 'Peguem-no!'. Grita-se: 'Pega ele'. Pode até ser um erro gramático mas ele grita: 'Pega ele!'"
O "diálogo naturalista", a "sintaxe da fala coloquial" sempre o interessou. E no dia-a-dia só consegue isso "espionando as pessoas."

(publicado no suplemento de Ípsilon de 22 de Maio de 2009)

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