Autobiografia de Maria Lúcia Lepecki
Historinha de vida
Um mapa político do Brasil facilita. Deite os olhos para o meio do território e verá o perfil de Minas Gerais, uma cabeça de galo, de bico para Ocidente. Este bico é o Triângulo Mineiro. Ali fica Araxá, onde nasci em Fevereiro de 1940.
A família da minha mãe, Botelho, ali chegara, de Trás-os-Montes, em fins do século XVIII e recebera sesmarias que entravam por Goiás. Ricos durante várias gerações, uma parte deles colapsou financeiramente por volta de 1890. Calhou a sina ao meu bisavô. E as fazendas do meu avô (João Botelho) levaram sumiço aí por 1930, a tal ponto assim sendo que à minha mãe calhou, como herança do que fora vasta fortuna, uma máquina de costura. Quebrada, dizia ela. Do lado materno, era minha mãe uma Afonso Porfírio, também de ascendência portuguesa, mas com evidente mistura de índios e africanos. Tenho dois irmãos, Rosa de Lima, de 1943, e Manuel Emílio, de 1945. A Rosita saiu aos Botelhos, clara, sardenta, cabelos vermelhos. O Manuel é moreno, meio indiático, puxado a mim.
Meu pai era da Zona da Mata, descendo no Sudeste de Minas, na direcção do Rio de Janeiro. A cidade é São João Nepomuceno. Na sua família misturaram-se, com notável equilíbrio, espanhóis, portugueses, negros e índios. Disto resultou o interessantíssimo tipo físico do meu pai e sobretudo de uma das suas irmãs, que ora parecia uma índia ora uma judia sefardita. Conforme o modo como nos olhasse, podia evocar a Mona Lisa. Esquisitices das mestiçagens.
Meu avô paterno, Manuel dos Reis Torres, pequeno fazendeiro, casou em segundas núpcias com minha avó (Aurora). Morreu ele por volta de 1915. A vovó ficou com três filhos, duas meninas e um menino. Viviam da fazenda, que a vovó geria com a ajuda de um capataz, e onde havia café e cana de açucar, para além da criação de gado leiteiro. Nesta fazenda passávamos, meus dois irmãos e eu, as férias grandes de fim-de-ano. Em 1935 o meu pai, formado em Direito, foi para Araxá como Promotor de Justiça (Delegado do Ministério Público) e ali se casou, em 1939, com a minha mãe, que entretanto estudara num Colégio de irmãs salesianas em São Paulo. Eram os dois profundamente estudiosos e viciados em leitura. Quando se casaram, ambos dominavam bem latim e francês, minha mãe também o italiano e o grego, que ensinou ao meu pai, em extraordinária disciplina. Três vezes por semana sentava-se com ele no escritório, dava-lhe uma hora de aula, com uma Grammatica Grega, capa cor-de-rosa, à frente. No tempo livre entre os processos, o forum e as aulas no Colégio dos Salesianos de Dom Bosco, o meu pai fazia, religiosamente «o dever de casa da mamãe», alturas em que eram interditas incursões ao escritório. Como resultado dessa programação intelectual e doméstica, acabaram os dois por ler os clássicos gregos no original, tal como faziam com os latinos, os franceses e os italianos. Em meados dos anos quarenta, abriu-se no Araxá uma delegação do Instituto de Cultura Inglesa. Lá foram os dois, resultando disto originais ingleses nas estantes do escritório.
Cresci, assim, numa casa cheia de livros e de conversas interessantes. Era pouco dada a brincadeiras, de modo que a mamãe teve o bom-senso de me ensinar a ler aos cinco anos. Foi um sossego, a partir dali não me faltou diversão. Lia obsessivamente, do Monteiro Lobato ao Viriato Correia ou o Francisco Marins, e mais o que escarafunchava nas estantes do pai. Dickens, Scott, Dumas e até um livro de capa azul, O Primo Bazilio. Devorei-o, às escondidas, aos dez anos. Não entendi da missa a metade. Confidenciei o mal-feito ao meu pai, ia eu na casa dos quarenta. E ele: «Não te fez mal nenhum, filha». Teve razão.
(Ler texto completo na versão impressa do seu JL)
Fonte: Jornal de Letras de 20Dez2006
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