Filipe Zau: O velho tribalismo e o moderno clientelismo
via Lusofonia Horizontal by Daniel on 7/19/10
A seguir, artigo publicado no Jornal de Angola da última sexta-feira, 16 de Julho de 2010:
O velho tribalismo e o moderno clientelismo
Filipe Zau*
A propósito da morte do jornalista, escritor e historiador inglês Basil Davidson, revisitei um dos últimos trabalhos, que, em língua portuguesa, surgiu sob o título "O Fardo do Homem Negro – Os efeitos do Estado-Nação em África", uma edição angolana da Associação Chá de Caxinde.
Sobre a questão étnica africana, Basil Davidson afirma que num sentido histórico bastante lato, "o tribalismo tem sido usado para exprimir a solidariedade e as lealdades comuns de pessoas que partilham entre si um país e uma cultura". Citando Crawford Young, considerou inócuo o tribalismo antigo e ao clientelismo de Estado apelida-o de moderno "tribalismo" em África. Para Young, um professor de Ciência Política da Universidade de Wisconsin (Madison, EUA), que, em 1963, publicou um estudo sobre a experiência da edificação do estado-nação na actual República Democrática do Congo, as questões étnicas ligadas ao tribalismo sempre existiram em África ou em qualquer outro lugar. Para Davidson o tribalismo tem sido, muitas vezes, uma força do bem, que cria uma sociedade civil dependente de leis e de um Estado de Direito. Daí que, neste sentido, o conceito de "tribalismo", para ele, pouco divirja, na prática, do conceito de "nacionalismo". Ler mais
Nacionalismo e patriotismo
Abro aqui um parêntesis para considerar uma eventual interferência comunicacional resultante de uma tradução menos cuidada ou, então, inferir sobre a possibilidade de uma eventual confusão de conceitos o que, no caso presente, o bom senso e a humildade me levam a não levantar sequer esta hipótese, independentemente do olhar crítico que os trabalhos de investigação científica sempre nos impõem. Mas, ao falarmos de "nacionalismo" ou de "patriotismo", a rigor, não estamos a dizer a mesma coisa. De acordo com Georges Burdeau, a "nação" não é mais do que uma ideia ou representação e ela implica um passado comum, do qual os membros da comunidade têm certa consciência. No conceito de nação, a unidade procura manifestar-se através de instituições comuns, é simultaneamente política, económica e, para os casos da grande maioria dos países europeus, normalmente cultural, já que para a grande maioria dos países africanos, devido à divisão de África na Conferência de Berlim (1884-1885), de acordo com os interesses das potências coloniais da época, dificilmente existe uma unidade cultural. Por outro lado, segundo J. Jerzy Wiatr, citado pelo sociólogo angolano Paulo de Carvalho, em "Angola, quanto tempo falta para o amanhã? Reflexões sobre as crises política, económica e social", o conceito de "pátria" não está ligado a um conceito geográfico, mas sim à vivência e convicções subjectivas do indivíduo. Na perspectiva sociológica, o conceito de pátria, segundo Stanislaw Ossowski, está associado a atitudes psíquicas de um grupo social e corresponde ao que usualmente se designa por herança cultural desse mesmo grupo. Daí que as pessoas que partilham as mesmas experiências e apresentam os mesmos pontos de vista em relação à história do grupo, estão ligadas a uma mesma "pátria". Assim sendo e salvo melhor opinião, a similaridade mais próxima ao conceito de "tribalismo", de acordo com a perspectiva de Basil Davidson, é o "patriotismo", quer pelo associativismo no contexto de uma sociedade civil, quer por outros possíveis aspectos de ordem maioritariamente cultural e não o "nacionalismo" por razões de ordem maioritariamente política e institucional.
A invenção das tribos
Antes do imperialismo moderno, os europeus que visitavam e escreviam sobre o nosso continente raramente estabeleceram uma associação entre "tribalismo", "patriotismo" e a tendência para a criação de um "nacionalismo" em África. Porém, o "tribalismo" moderno – designação de Basil Davidson para o "clientelismo" – é bastante diferente, uma vez que "floresce na desordem, é terrivelmente destruidor para a sociedade civil, arrasa a moralidade e escarnece do Estado de Direito". Historiadores de muitos países vêm, de forma crescente, revelando a existência de uma sociedade civil nas comunidades africanas. Contudo, a partir da partilha de África na Conferência de Berlim, em finais do século XIX, essa mesma sociedade civil, depois de minada, foi aniquilada por décadas de domínio estrangeiro e, aparentemente, "não deixou quaisquer estruturas válidas para o futuro". Refere ainda Basil Davidson que foi evidentemente por causa disso que, a política colonial britânica afirmou, que a sua empreitada em África era "construir uma nação", porque em Londres se supunha que esse desiderato estava aquém das capacidades dos próprios africanos. Inicialmente, os britânicos (e não só) se deram ao trabalho de inventar tribos nas quais se deviam integrar os africanos. Mais tarde, com a aproximação da possível independência passaram a construir estados-nação. Na medida em que, de acordo com os britânicos, não existiam quaisquer modelos africanos, estes Estados tinham que ser construídos com base nos modelos europeus. Daí que, estes mesmos modelos, sendo estrangeiros, não conseguissem alcançar legitimidade aos olhos da maioria dos cidadãos africanos e rapidamente demonstraram a sua inadequação para proteger e promover os seus interesses, excepto nos raros casos de alguns privilegiados.
A génese do clientelismo
Tendo ficado com os restos de uma sociedade civil frágil e falível, a maioria desses cidadãos procurou encontrar formas de defesa. A principal forma de o fazer foi através do tribalismo (reconhecidamente um "termo sempre traiçoeiro"), ou melhor do clientelismo: "uma espécie de patrocínio corrupto, dependente de redes pessoais ou familiares, e de outras redes similares de interesses locais". Sendo um "sistema", o clientelismo tornou-se, em grande medida, na forma de funcionamento da política em África. As suas rivalidades semeiam naturalmente o caos. Tal como a miséria económica, que actualmente aflige grande parte de África. Este tribalismo moderno ou "clientelismo, segundo Davidson, "reflecte, em grande medida, características patológicas do Estado [africano] contemporâneo": do estado-nação pós-colonial ou como outros designam "neocolonial", resultantes da descolonização.
Joseph Miller, no seu livro "Poder Político e Parentesco – Os antigos Estados Mbundu em Angola" já referia que "a história política dos Mbundu não se moveu numa direcção única, tendo consistido antes numa alternância irregular entre o triunfo de instituições baseadas nas lealdades de parentesco e o daquelas que faziam a articulação com a exigência dos reis. Repetidas vezes emergiam reis para reivindicar os serviços dos membros dos grupos de parentesco Mbundu, os quais persistentemente se viam a si próprios primeiro como membros das linhagens e apenas em segunda instância, e geralmente sob ameaça, como obedientes a uma autoridade externa". No texto "Angola: O Passado vivido e o Presente em Presença – hipótese para uma análise antropológica da crise em curso", o seu autor, Rui Duarte de Carvalho, refere que o Estado para garantir a sua própria reprodução, fez nascer uma classe político-burocrática capaz de recuperar e adaptar "sistemas de dependência e de clientela familiar, de parentesco, étnica ou regional, factores de identificação capazes de garantir o acesso a estatutos, nomeadamente económicos e sociais, inalcançáveis por outras vias". Mas, segundo o mesmo autor, tal aconteceu em toda a parte do mundo em que as condições estruturais, do passado e do presente, se assemelhavam às angolanas.
* Ph.D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais
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