Quem se lembra do SILVER SKY e do 10 de Janeiro de 1976 em Moçâmedes/Namibe?
via GENTE DO MEU TEMPO. de princesadonamibe em 29/12/08
Quem se recorda do Silver Sky, o «famoso» navio que aos 10 de Janeiro de 1976 saiu do Porto de Moçâmedes (Namibe) levando a bordo cerca de 1600 brancos e alguns africanos em fuga para a Namíbia? Esta foto foi cedida por Carlos José um dos «refugiados», cujo rosto se encontra no canto superior dt. da mesma. (calonda.rh@netcabo.co.ao).
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Moçâmedes, 10 de Janeiro de 1976
No dia 10 de Janeiro de 1976, Moçâmedes era uma espécie de cidade fantasma, com as ruas vazias e praticamente abandonada pela maior parte da sua população branca, excepto um pequeno número que , apesar de todos os perigos, insistia em ali permanecer. A "ponte aérea» que em 1975 fora posta à disposição por Portugal, financiada e organizada, como era voz corrente, pelos Estados Unidos, potência que já antes havia feito tudo para correr com os europeus das suas «colónias», encarregara-se de promover em Angola uma autêntica «limpeza étnica». Outros haviam partido há muito, em caravanas de carros, rumo à Namíbia e África do Sul, atravessando a amaldiçoada «Costa dos Esqueletos», e outros ainda, servindo-se de navios de carga, traineiras, etc. etc.
A debandada da maior parte dos dos brancos que insistiram em permanecer após a independência deu-se nesse dia 10 de Janeiro de 1976, quando a UNITA alucinada desce do Lubango, cidade para onde se havia refugiado no seu quartel general, após a caça ao homem que lhe fora feita pela FNLA no dia da independência, e que havia redundado na matança de vários dos seus guerrilheiros. Nesse dia, uma voz ecoava aos microfones do Rádio Clube de Moçâmedes: fujam, fujam que eles aproximam-se e a matança prevê-se enorme... Alguém de origem europeia ligado à UNITA e que já ali havia trabalhado antes, lançara o grito de alarme para avisar a população branca que deveria procurar refugio dentro dos navios que se encontravam atracados no porto e zarparem para o alto mar... Sabe-se que a FNLA reunia nas suas hostes alguns jovens de origem europeia, incluindo mercenários. Foram momentos de grande emoção, em que elementos da FNLA entraram na agência do Banco de Angola e estoiraram com a caixa forte para levar o dinheiro que ali havia, e havia dinheiro antigo espalhado pelo ar e por toda a parte. Enquanto isso, os poucos empregados que restavam do Banco Pinto & Souto Mayor, antes de correrem para o cais, trataram de meter em sacos de sarapilheira o dinheiro dos cofres daquele banco (cerca de mil e tal contos) para levarem consigo para o navio e o entregarem em Portugal, situação que veio a acontecer perante o riso daqueles a quem a quantia viera a ser entregue.
O Silver Sky fez-se ao largo com 1600 pessoas a bordo, incluindo alguns africanos, também eles assustados com as matanças, gente que julgava poder ficar nos mares de Moçâmedes apenas o tempo suficiente até a fúria acalmar e regressar à cidade, mas que ordens emanadas para bordo fizeram o navio deslocar-se para Walvys Bay na Namíbia, e a partir daí foram conduzidas de comboio para um campo de refugiados em Windoek, para em seguida, serem metidos num avião rumo a Portugal, de mãos completamente vazias e coração desfeito.
Aliás, ainda antes da independência, em Setembro/Outubro de 1976, já era problemático para os brancos de Moçâmedes levarem consigo os seus bens. Mesmo antes dos militares portugueses e das autoridades portuguesas terem abandonado o território, para se concentrarem em Luanda, à espera do 11 de Novembro para se porem a milhas, já eram os soldados dos movimentos quem decidia aquilo que podia seguir para os navios e aquilo que não podia, e quem mandava abrir caixotes e bagageiras dos carros de onde eram mandados retirar rádios, electrodomésticos, esquentadores, garrafas de whisky e outras coisas mais que se encontravam ali. Não se deixava embarcar nenhum jeep e com o aproximar da independência só os carros que os «guerrilheiros» entendiam podiam embarcar. Rosa Coutinho decretara que apenas se poderia levantar o máximo 5 contos por semana e os automóveis só podiam abandonar o território se tivessem mais de 1 ano.
Viajaram no Silver Sky, entre outros: Virgilio Nunes de Almeida, Mário Lopes, José Manuel Paulo do Nascimento (Mantela), Silvino Viveiros e mulher (Locas), ex-mulher do Carlos Maria Inácio (Bode), o proprietário da Casa das Noivas, vários elementos da família Minas, Laurindo Couto, ? um dos irmãos Ascenso e mulher, Benvinda e Felício (mestre de traineira), Popey, Rolão, Mário Lopes, Manuela Costa, Tendinha, Celeste Nascimento e marido, Briguidé?, .... e tanta gente mais cujos nomes ainda não consegui reunir. O barco era de carga e não havia condições para acomodar nem alimentar tanta gente. Eram as senhoras que cozinhavam, mas apenas panelas cheias de arroz, arroz, e mais arroz.
Em 17 de Fevereiro de 1976 os brancos em Moçâmedes contavam-se pelos dedos das mãos quando se dá a derradeira debandada. Contou-me António Gonçalves de Matos, o popular «Sopapo», que nesse dia havia tiroteio em toda a cidade, sangue muito sangue corria para os lados da Aguada e junto da Fortaleza. Mais uma vez o recurso foi a fuga para o cais e para bordo de um navio que ali se encontrava atracado . Um velho navio de ferro de nacionalidade estrangeira, de pequeno porte, levava consigo os brancos que ainda restavam na cidade de Moçâmedes. Já feito ao largo, António lembrara-se do «Patusco», o seu pequeno cão de estimação que havia desaparecido na véspera do quintal de sua casa que ficava por detrás da Associação Comercial (edificio novo). Numa «chata» (pequeno barco), fez-se à terra à procura do cão que foi encontrar no plateau da Torre do Tombo, a caminho da praia Amélia, tendo que saltar um muro para o retirar dali e o levar consigo para bordo. Mas António também fora a terra com outra missão. Era a de procurar pessoas conhecidas que ainda se encontravam retidas no interior de suas casas, como era o caso de António, irmão do Eurico do Cinema, de Louro (analista), marido da Lili Eurico, de Francisco Silva , mulher Maria do Amparo e uma filha na altura grávida e genro. Viajaram também nesse barco, segundo me contou António, o Turra?, o Chico da Conceição?, o Estregildo sapateiro e outros mais cujos nomes ainda não chegaram ao meu conhecimento. Conta-se que, como não haviam mantimentos, antes de embarcar, foram arrombados os armazéns da alfândega que ficavam junto da ARAN, no porto de cais, e retirados daí para o barco. Com António viajou também o seu criado Simão, o cozinheiro do Dr. Gata, mas estes acabariam por ser recambiados ao chegarem a Welvys Bay por falta de documentos.
Outros fugiram de traineiras rumo a Luanda, como foi o caso de Helder Duarte. Ferreira do Saco um dos poucos brancos que insistira em ficar, acabaria por ser abatido junto das suas salinas na Praia Azul. Outro que pereceu nesta confusão foi o moçamedense Mário (Chouriço) quando se encontrava a vender ao balcão de um pequeno bar que fora invadido por guerrilheiros.
Quanto à população africana de Moçâmedes, os «kimbares», estes estavam confusos. Eles nutriam em relação à população branca da cidade uma certa afectividade criada em anos e anos de trabalho juntos, eram pessoas simples e boas que se interrogavam, muitas vezes sem compreender, aquilo que se estava a passar. Até à independência eles nunca ocuparam as casas dos brancos e mesmo após a independência assistiram estupefactos aos assaltos às lojas e aos saques da UNITA e da FNLA que tiveram lugar nessa fase crítica em que a cidade de Moçâmedes ficou sem autoridade.
A independência de Angola não foi , pois, o início da paz, mas o início de uma nova guerra aberta. Muito antes do dia da Independência, a 11 de Novembro de 1975, já os três três grupos nacionalistas que tinham combatido o «colonialismo» português lutavam entre si pelo controle do novo país, e em particular da capital, Luanda. Cada um deles era na altura apoiado por potências estrangeiras, dando ao conflito uma dimensão internacional. A União Soviética e principalmente Cuba apoiavam o MPLA, que controlava a cidade de Luanda e algumas outras regiões da costa, nomeadamente o Lobito e Benguela. Os cubanos não tardaram a desembarcar em Angola (5 de outubro de 1975). A África do Sul apoiava a UNITA e invadiu Angola (9 de Agosto de 1975). O Zaire apoiava a FNLA e invadiu também Angola em Julho de 1975. A FNLA contava também com o apoio da China, mercenários portugueses e ingleses mas também com o apoio da África do Sul. Os EUA que apoiaram inicialmente apenas a FNLA, não tardam a ajudar também a UNITA. Em Outubro de 1975, o transporte aéreo de quantidades enormes de armas e soldados cubanos, organizado pelos soviéticos, mudou a situação, favorecendo o MPLA. As tropas sul-africanas e zairenses retiraram-se e o MPLA conseguiu formar um governo socialista unipartidário. (continua...)
Porque este blog é livre, e pretende a verdade e apenas a verdade dos factos, cabem nele todos os testemunhos desses momentos que anteciparam e se seguiram à independência de Angola, vividos na cidade de Moçâmedes. Eis aqui alguns encontados na Net:
A FUGA
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Também encontrei este testemunho no blog de Guidha Capelo :
TEXTO ESCRITO DURANTE A FUGA DA CIDADE DE MOÇÂMEDES – GUERRA DE ANGOLA – 1976 ( por um amiga)
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Moçâmedes, 10 de Janeiro de 1976
No dia 10 de Janeiro de 1976, Moçâmedes era uma espécie de cidade fantasma, com as ruas vazias e praticamente abandonada pela maior parte da sua população branca, excepto um pequeno número que , apesar de todos os perigos, insistia em ali permanecer. A "ponte aérea» que em 1975 fora posta à disposição por Portugal, financiada e organizada, como era voz corrente, pelos Estados Unidos, potência que já antes havia feito tudo para correr com os europeus das suas «colónias», encarregara-se de promover em Angola uma autêntica «limpeza étnica». Outros haviam partido há muito, em caravanas de carros, rumo à Namíbia e África do Sul, atravessando a amaldiçoada «Costa dos Esqueletos», e outros ainda, servindo-se de navios de carga, traineiras, etc. etc.
A debandada da maior parte dos dos brancos que insistiram em permanecer após a independência deu-se nesse dia 10 de Janeiro de 1976, quando a UNITA alucinada desce do Lubango, cidade para onde se havia refugiado no seu quartel general, após a caça ao homem que lhe fora feita pela FNLA no dia da independência, e que havia redundado na matança de vários dos seus guerrilheiros. Nesse dia, uma voz ecoava aos microfones do Rádio Clube de Moçâmedes: fujam, fujam que eles aproximam-se e a matança prevê-se enorme... Alguém de origem europeia ligado à UNITA e que já ali havia trabalhado antes, lançara o grito de alarme para avisar a população branca que deveria procurar refugio dentro dos navios que se encontravam atracados no porto e zarparem para o alto mar... Sabe-se que a FNLA reunia nas suas hostes alguns jovens de origem europeia, incluindo mercenários. Foram momentos de grande emoção, em que elementos da FNLA entraram na agência do Banco de Angola e estoiraram com a caixa forte para levar o dinheiro que ali havia, e havia dinheiro antigo espalhado pelo ar e por toda a parte. Enquanto isso, os poucos empregados que restavam do Banco Pinto & Souto Mayor, antes de correrem para o cais, trataram de meter em sacos de sarapilheira o dinheiro dos cofres daquele banco (cerca de mil e tal contos) para levarem consigo para o navio e o entregarem em Portugal, situação que veio a acontecer perante o riso daqueles a quem a quantia viera a ser entregue.
O Silver Sky fez-se ao largo com 1600 pessoas a bordo, incluindo alguns africanos, também eles assustados com as matanças, gente que julgava poder ficar nos mares de Moçâmedes apenas o tempo suficiente até a fúria acalmar e regressar à cidade, mas que ordens emanadas para bordo fizeram o navio deslocar-se para Walvys Bay na Namíbia, e a partir daí foram conduzidas de comboio para um campo de refugiados em Windoek, para em seguida, serem metidos num avião rumo a Portugal, de mãos completamente vazias e coração desfeito.
Aliás, ainda antes da independência, em Setembro/Outubro de 1976, já era problemático para os brancos de Moçâmedes levarem consigo os seus bens. Mesmo antes dos militares portugueses e das autoridades portuguesas terem abandonado o território, para se concentrarem em Luanda, à espera do 11 de Novembro para se porem a milhas, já eram os soldados dos movimentos quem decidia aquilo que podia seguir para os navios e aquilo que não podia, e quem mandava abrir caixotes e bagageiras dos carros de onde eram mandados retirar rádios, electrodomésticos, esquentadores, garrafas de whisky e outras coisas mais que se encontravam ali. Não se deixava embarcar nenhum jeep e com o aproximar da independência só os carros que os «guerrilheiros» entendiam podiam embarcar. Rosa Coutinho decretara que apenas se poderia levantar o máximo 5 contos por semana e os automóveis só podiam abandonar o território se tivessem mais de 1 ano.
Viajaram no Silver Sky, entre outros: Virgilio Nunes de Almeida, Mário Lopes, José Manuel Paulo do Nascimento (Mantela), Silvino Viveiros e mulher (Locas), ex-mulher do Carlos Maria Inácio (Bode), o proprietário da Casa das Noivas, vários elementos da família Minas, Laurindo Couto, ? um dos irmãos Ascenso e mulher, Benvinda e Felício (mestre de traineira), Popey, Rolão, Mário Lopes, Manuela Costa, Tendinha, Celeste Nascimento e marido, Briguidé?, .... e tanta gente mais cujos nomes ainda não consegui reunir. O barco era de carga e não havia condições para acomodar nem alimentar tanta gente. Eram as senhoras que cozinhavam, mas apenas panelas cheias de arroz, arroz, e mais arroz.
Em 17 de Fevereiro de 1976 os brancos em Moçâmedes contavam-se pelos dedos das mãos quando se dá a derradeira debandada. Contou-me António Gonçalves de Matos, o popular «Sopapo», que nesse dia havia tiroteio em toda a cidade, sangue muito sangue corria para os lados da Aguada e junto da Fortaleza. Mais uma vez o recurso foi a fuga para o cais e para bordo de um navio que ali se encontrava atracado . Um velho navio de ferro de nacionalidade estrangeira, de pequeno porte, levava consigo os brancos que ainda restavam na cidade de Moçâmedes. Já feito ao largo, António lembrara-se do «Patusco», o seu pequeno cão de estimação que havia desaparecido na véspera do quintal de sua casa que ficava por detrás da Associação Comercial (edificio novo). Numa «chata» (pequeno barco), fez-se à terra à procura do cão que foi encontrar no plateau da Torre do Tombo, a caminho da praia Amélia, tendo que saltar um muro para o retirar dali e o levar consigo para bordo. Mas António também fora a terra com outra missão. Era a de procurar pessoas conhecidas que ainda se encontravam retidas no interior de suas casas, como era o caso de António, irmão do Eurico do Cinema, de Louro (analista), marido da Lili Eurico, de Francisco Silva , mulher Maria do Amparo e uma filha na altura grávida e genro. Viajaram também nesse barco, segundo me contou António, o Turra?, o Chico da Conceição?, o Estregildo sapateiro e outros mais cujos nomes ainda não chegaram ao meu conhecimento. Conta-se que, como não haviam mantimentos, antes de embarcar, foram arrombados os armazéns da alfândega que ficavam junto da ARAN, no porto de cais, e retirados daí para o barco. Com António viajou também o seu criado Simão, o cozinheiro do Dr. Gata, mas estes acabariam por ser recambiados ao chegarem a Welvys Bay por falta de documentos.
Outros fugiram de traineiras rumo a Luanda, como foi o caso de Helder Duarte. Ferreira do Saco um dos poucos brancos que insistira em ficar, acabaria por ser abatido junto das suas salinas na Praia Azul. Outro que pereceu nesta confusão foi o moçamedense Mário (Chouriço) quando se encontrava a vender ao balcão de um pequeno bar que fora invadido por guerrilheiros.
Quanto à população africana de Moçâmedes, os «kimbares», estes estavam confusos. Eles nutriam em relação à população branca da cidade uma certa afectividade criada em anos e anos de trabalho juntos, eram pessoas simples e boas que se interrogavam, muitas vezes sem compreender, aquilo que se estava a passar. Até à independência eles nunca ocuparam as casas dos brancos e mesmo após a independência assistiram estupefactos aos assaltos às lojas e aos saques da UNITA e da FNLA que tiveram lugar nessa fase crítica em que a cidade de Moçâmedes ficou sem autoridade.
A independência de Angola não foi , pois, o início da paz, mas o início de uma nova guerra aberta. Muito antes do dia da Independência, a 11 de Novembro de 1975, já os três três grupos nacionalistas que tinham combatido o «colonialismo» português lutavam entre si pelo controle do novo país, e em particular da capital, Luanda. Cada um deles era na altura apoiado por potências estrangeiras, dando ao conflito uma dimensão internacional. A União Soviética e principalmente Cuba apoiavam o MPLA, que controlava a cidade de Luanda e algumas outras regiões da costa, nomeadamente o Lobito e Benguela. Os cubanos não tardaram a desembarcar em Angola (5 de outubro de 1975). A África do Sul apoiava a UNITA e invadiu Angola (9 de Agosto de 1975). O Zaire apoiava a FNLA e invadiu também Angola em Julho de 1975. A FNLA contava também com o apoio da China, mercenários portugueses e ingleses mas também com o apoio da África do Sul. Os EUA que apoiaram inicialmente apenas a FNLA, não tardam a ajudar também a UNITA. Em Outubro de 1975, o transporte aéreo de quantidades enormes de armas e soldados cubanos, organizado pelos soviéticos, mudou a situação, favorecendo o MPLA. As tropas sul-africanas e zairenses retiraram-se e o MPLA conseguiu formar um governo socialista unipartidário. (continua...)
Porque este blog é livre, e pretende a verdade e apenas a verdade dos factos, cabem nele todos os testemunhos desses momentos que anteciparam e se seguiram à independência de Angola, vividos na cidade de Moçâmedes. Eis aqui alguns encontados na Net:
Em Dezembro de 1975, os problemas começaram a agravar-se na cidade do Namibe, a ex-Moçãmedes. «Subitamente, o edifício do mercado é atingido pelo arremesso de bazucas e granadas, num gesto alucinado, Imga arrasta Atot, por entre a chuva de balas e pó em direcção à casa da irmã mais velha, Asle, que vivia a poucos metros dali. Asle tinha uma bebé com oito meses, Aivlis, e estava grávida de cinco meses de outra menina que viria a chamar-se Aluap. Para se protegerem das balas, pois a casa estava cercada por militares, tentavam esconder-se debaixo das camas mas, a aflição, o medo, o desespero eram asfixiantes e não havia como proteger Asle pois, a sua enorme barriga não lhe permitia meter-se debaixo da cama...
Foram momentos extenuantes de aflição, incerteza e dor. A falta de notícias de seus pais, irmãos e demais familiares, toldava o semblante de Imga de uma agonia misto de revolta e dor, mesclada de impotência. Estariam ainda vivos? A comida escasseava, a água era quase nada. Qualquer movimento, o menor ruido servia de pretexto para que os disparos chovessem em direcção à casa... ninguem se podia mover, nem mesmo para ir à casa de banho...
Foram horas intermináveis! As persianas cerradas, as janelas e portas trancadas, não permitiam discernir entre o dia e a noite. Vencidos pela dor, a fome e o cansaço, adultos e crianças adormecem... Entretanto, sempre alerta, Imga apercebe-se que o barulho dos tiros estava mais disperso. Anel, prima de Imga, lembra-se de um tacho de caldeirada de peixe que ficara na cozinha do quintal. O risco era grande... Quem se arriscaria a sair do esconderijo, atravessar o quintal até à cozinha, para alcançar a famijerada caldeirada?
Anel, como sempre, devota à família, tomou a si essa responsabilidade. Mas, Imga, vivaça como sempre e, do alto da sua inocência, vendo que mais ninguém se decidia, estendeu a sua mãozinha a Anel e puxou-a em passo de corrida, em direcção ao quintal... Ao sairem da cozinha de tacho nas mãos, uma voz entoa em tom ameaçador... Imga, ergue os seus olhos no sentido da voz e, sem deixar transparecer o turbilhão de emoções que lavavam a sua alma infantil, sussurra -"...os meninos têm fome, viemos apenas pegar este tacho..."-, o desconhecido de arma empunhada na sua direcção interpela -"... quem mais está aí?"-, Imga responde,-" ...ninguem..."
Liberadas pelo seu algoz, retornam à casa principal juntando-se aos demais... Os tiros recomeçam e ouvem-se gritos e o barulho de algo a cair ao chão nas imediações... As horas passaram, as trocas de tiros cessaram... De repente, alguem bate à porta... o medo paraliza todos os que ali estavam, temia-se o pior...
Entretanto, por entre as batidas ouve-se uma voz, -"... pessoal, respondam por favor, estão todos bem?"
Ao ouvir a voz do pai, Imga corre em direcção à porta e, num misto de tristeza e alegria entre lágrimas e sorrisos constatam que estavam todos vivos pois, de ambos os lados tinha-se temido o pior. Era noite de Natal. E que Natal! Não haveria Ceia, nem Presentes, nem Luzes nem Cânticos. Apenas, a unidade de uma família, em torno da vida que esteve prestes a ser-lhes roubada.
Nos quintais da vizinhança, jaziam corpos de militares. Nas ruas os feridos, os mortos... eram esses os presentes dos Moçamedenses, naquele fatídico Natal de 1975.
Publicada por katcheroForam momentos extenuantes de aflição, incerteza e dor. A falta de notícias de seus pais, irmãos e demais familiares, toldava o semblante de Imga de uma agonia misto de revolta e dor, mesclada de impotência. Estariam ainda vivos? A comida escasseava, a água era quase nada. Qualquer movimento, o menor ruido servia de pretexto para que os disparos chovessem em direcção à casa... ninguem se podia mover, nem mesmo para ir à casa de banho...
Foram horas intermináveis! As persianas cerradas, as janelas e portas trancadas, não permitiam discernir entre o dia e a noite. Vencidos pela dor, a fome e o cansaço, adultos e crianças adormecem... Entretanto, sempre alerta, Imga apercebe-se que o barulho dos tiros estava mais disperso. Anel, prima de Imga, lembra-se de um tacho de caldeirada de peixe que ficara na cozinha do quintal. O risco era grande... Quem se arriscaria a sair do esconderijo, atravessar o quintal até à cozinha, para alcançar a famijerada caldeirada?
Anel, como sempre, devota à família, tomou a si essa responsabilidade. Mas, Imga, vivaça como sempre e, do alto da sua inocência, vendo que mais ninguém se decidia, estendeu a sua mãozinha a Anel e puxou-a em passo de corrida, em direcção ao quintal... Ao sairem da cozinha de tacho nas mãos, uma voz entoa em tom ameaçador... Imga, ergue os seus olhos no sentido da voz e, sem deixar transparecer o turbilhão de emoções que lavavam a sua alma infantil, sussurra -"...os meninos têm fome, viemos apenas pegar este tacho..."-, o desconhecido de arma empunhada na sua direcção interpela -"... quem mais está aí?"-, Imga responde,-" ...ninguem..."
Liberadas pelo seu algoz, retornam à casa principal juntando-se aos demais... Os tiros recomeçam e ouvem-se gritos e o barulho de algo a cair ao chão nas imediações... As horas passaram, as trocas de tiros cessaram... De repente, alguem bate à porta... o medo paraliza todos os que ali estavam, temia-se o pior...
Entretanto, por entre as batidas ouve-se uma voz, -"... pessoal, respondam por favor, estão todos bem?"
Ao ouvir a voz do pai, Imga corre em direcção à porta e, num misto de tristeza e alegria entre lágrimas e sorrisos constatam que estavam todos vivos pois, de ambos os lados tinha-se temido o pior. Era noite de Natal. E que Natal! Não haveria Ceia, nem Presentes, nem Luzes nem Cânticos. Apenas, a unidade de uma família, em torno da vida que esteve prestes a ser-lhes roubada.
Nos quintais da vizinhança, jaziam corpos de militares. Nas ruas os feridos, os mortos... eram esses os presentes dos Moçamedenses, naquele fatídico Natal de 1975.
A FUGA
Temendo uma recidiva dos confrontos, Al reune a família em retirada para a Baía das Pipas, o refúgio, o paraíso da família. Aí, recuperam energias e aguardam notícias para poderem voltar a normalidade. No aconchego da casa dos avós de Imga, saboreando a deliciosa sopa de peixe da querida avó Katchero, em torno da longa mesa da sala, com o velho avô Espírito Santo, nos seus cabelos prateados e ternas mãos de longos dedos amarelecidos pelo cigarro, comungavam todos daquela paz familiar, alheios ao facto de que esta sería a última vez que este quadro se pintaria...
As notícias vindas da cidade, eram favoráveis ao regresso da família à vida normal. Os adultos retomam a sua actividade nas lojas e as crianças regressam à escola. A vida tería de seguir o seu curso... Contudo, esta calmia era apenas aparente. O novo ano de 1976 ainda mal havia iniciado. Imga como era costume, todas as manhãs, foi para o colégio acompanhada de seu primo Onem. De repente, o curso normal das aulas é interrompido pelo toque incessante de sirenes. As freiras apelam à calma e ao silêncio, na tentativa de impedir que as crianças saíssem em debandada. Mas, era muito difícil conter o medo e o desespero que se apoderava de todos! As notícias que chegavam indiciavam o reeinício dos confrontos. As portas do Colégio Nossa Senhora de Fátima abriram-se por fim e, entre lágrimas e gritos de desespero, deu-se início a uma louca corrida contra o tempo pois, anunciava-se nas ruas a existência de barcos atracados no Cais, prontos a transportar quem quisesse abandonar a cidade pois, as forças opositoras estaríam a escassos quilómetros.
Muitas crianças desencontraram-se dos seus pais. Até mesmo Imga! Ao chegar a casa a mãe já se encontrava com sacos de mão, pois não havería tempo para arrumar mais nada. Mas o pai, onde estava o pai de Imga? O pai saíra ao seu encontro no colégio. Imga chorava pois não sairia dali sem o seu pai... Felizmente, o pai de Imga chegou, reuniu a família e dirigiram-se para o Cais, apenas com a roupa do corpo e pouco mais...
Lá estava ele: O Silver Sky. O nosso salva-vidas!
Num abrir e fechar de olhos, estávamos a zarpar em direcção ao alto mar.
Publicada por KatcheroAs notícias vindas da cidade, eram favoráveis ao regresso da família à vida normal. Os adultos retomam a sua actividade nas lojas e as crianças regressam à escola. A vida tería de seguir o seu curso... Contudo, esta calmia era apenas aparente. O novo ano de 1976 ainda mal havia iniciado. Imga como era costume, todas as manhãs, foi para o colégio acompanhada de seu primo Onem. De repente, o curso normal das aulas é interrompido pelo toque incessante de sirenes. As freiras apelam à calma e ao silêncio, na tentativa de impedir que as crianças saíssem em debandada. Mas, era muito difícil conter o medo e o desespero que se apoderava de todos! As notícias que chegavam indiciavam o reeinício dos confrontos. As portas do Colégio Nossa Senhora de Fátima abriram-se por fim e, entre lágrimas e gritos de desespero, deu-se início a uma louca corrida contra o tempo pois, anunciava-se nas ruas a existência de barcos atracados no Cais, prontos a transportar quem quisesse abandonar a cidade pois, as forças opositoras estaríam a escassos quilómetros.
Muitas crianças desencontraram-se dos seus pais. Até mesmo Imga! Ao chegar a casa a mãe já se encontrava com sacos de mão, pois não havería tempo para arrumar mais nada. Mas o pai, onde estava o pai de Imga? O pai saíra ao seu encontro no colégio. Imga chorava pois não sairia dali sem o seu pai... Felizmente, o pai de Imga chegou, reuniu a família e dirigiram-se para o Cais, apenas com a roupa do corpo e pouco mais...
Lá estava ele: O Silver Sky. O nosso salva-vidas!
Num abrir e fechar de olhos, estávamos a zarpar em direcção ao alto mar.
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Também encontrei este testemunho no blog de Guidha Capelo :
TEXTO ESCRITO DURANTE A FUGA DA CIDADE DE MOÇÂMEDES – GUERRA DE ANGOLA – 1976 ( por um amiga)
Carta a um amor perdido
Estamos em Janeiro de 1976, após vários meses de entendimentos, acordos e desacordos, entre os movimentos de libertação e liderados por homens de educação colonial e solidificada sob princípios católicos. Nesta altura só existe desacordo e desentendimento... a "guerra civil" está no auge... mortes e sofrimento. O tempo aquece nessa parte da África junto ao deserto do Kalahari... 10 de Janeiro de 1976, nove horas e quarenta e cinco minutos, surge a notícia de se ter de abandonar a cidade devido à invasão por parte de um dos movimentos, e da previsão de grandes baixas por parte da população. Rapidamente deixamos nossas casas e haveres, e embarcamos num navio (Silver Sky) que se encontra atracado no cais de Moçâmedes para que este nos leve por alguns dias, até algumas milhas afastadas da costa. Para trás ficam alguns amigos, familiares... e inconscientemente muitos sonhos por concretizar. Mas havia a esperança de voltar... Será que alguém pode imaginar uma multidão desorganizada procurando num curto espaço de tempo preparar sua saída, dando prioridade a algumas coisas (poucas) e preterindo outras (muitas) que à partida pareciam de pouca importância? Longe, muito longe de nossa linda cidade entre o mar e o deserto dentro de um navio muitos jovens aguardam pelo sinal de regresso, esperançados de voltar, de poder continuar a sonhar e construir seu futuro. Nossos pais desgastados que uma vida de trabalho, tudo deixam para trás e as lágrimas rolam por rostos enrugados pelos sacrifícios de uma vida. ... Infelizmente as notícias não são boas. Teremos que definitivamente sair daquelas águas de "expectativa" partindo para outras de "incertezas" e de muita tristeza. Levantamos ferro e zarpamos para as terras do sul da África... Aí nossos corações ficaram apertados, e aqueles jovens sonhadores com uma vida pela frente emudecem, ficam cabisbaixos, seus semblantes tornam-se pesados... O amadurecimento precoce de suas vidas tem início de uma forma abrupta... estúpida... Amanhã atravessaremos algumas léguas de deserto de águas.É tão quente, como se o sol queimasse o nosso corpo. Às vezes os rapazes deliram, enxergam coisas no horizonte e falam como loucos. E é sozinho, à noite, que me pergunto se isto não é o inferno... »
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este texto terá continuidade...
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