domingo, 20 de maio de 2007

A mesa do Lucusse

O autor do artigo, Nuno Saldanha, Alferes Miliciano no Lucusse em 1972, afirma que reconheceu a mesa onde colocaram o cadáver do Presidente Savimbi. A mesa estaria colocada junto do campo de aviação do Lucusse e era utilizada para almoços ou petiscos de boas vindas a quem visitasse a localidade e que ele e alguns camaradas seus ali almoçaram várias vezes.
Rui Moio

Mais uma historieta, desta vez não de Saurimo ou Lubalo como foram as anteriores, mas sim do Lucusse, no Leste de Angola, abaixo do saliente do Cazombo, num dos locais onde estive colocado antes de ir para Henrique de Carvalho.

Estamos em Fevereiro de 2002 e surge, em Lisboa, a primeira notícia de Jonas Savimbi ter sido morto no Leste numa emboscada nesse dia. Mais tarde vim a saber que teria sido assassinado no dia anterior durante uma espera que lhe tinha sido feita no meio do mato, em resultado da traição de um dos seus colaboradores, durante a sua fuga ao que se julga para a Zâmbia.

Faço notar que disse assassinato e espera em vez de morto e emboscada, que são conceitos totalmente diferentes. O primeiro é um conceito civil e o segundo é um conceito militar o que faz toda a diferença. De facto Jonas Savimbi foi assassinado por via de um traidor e este não lhe permitiu assim que aquele morresse em combate. Portanto foi uma espera e não uma emboscada.

Nada me liga especialmente a Jonas Savimbi porque tenho conhecimento factual e seguro dos métodos internos que aplicava com os seus soldados e comandantes, especialmente com os com ele discordavam. Isto já em 1972.

Contudo, na minha vida militar no Leste, tive próximo de o conhecer pessoalmente após o acordo militar que ele fez com o Comando da Zona Militar Leste na altura comandado pelo Gen.Bettencourt Rodrigues. No meu quartel no Lucusse assisti e coordenei várias vezes a preparação e armazenamento em caixotes, de livros e material escolar que se destinavam às crianças e adultos das zonas “controladas” pela Unita. Eram zonas onde tacitamente (após o acordo) as nossas tropas não faziam operações militares. Em contrapartida a Unita, através dos madeireiros, controlava e impedia a entrada de abastecimentos do MPLA pela fronteira Leste. Savimbi cedo percebeu que seria melhor uma paz negociada do que a manutenção da guerra ate porque os movimentos de guerrilha (todos) já não possuíam nem mobilidade nem meios no terreno para a manter, bem ao contrário do que pretenderam demonstrar após o 25Abril.

Foi num desses caixotes que inclui uma mensagem pessoal para Savimbi onde lhe dizia que a título exclusivamente pessoal estaria disposto e tinha interesse em conversar com ele ainda que tivesse, caso ele concordasse, de ter autorização superior para esse encontro. Soube depois que naturalmente Savimbi se informou acerca daquele jovem Oficial que lhe fazia tal proposta, acerca das suas origens, da sua família, etc.

Esse encontro nunca foi agendado mas soube que Savimbi apreciou o meu atrevimento e que não recusou essa possibilidade. Só que o tempo e pouco depois a minha transferência para Henrique de Carvalho, foram eventualmente as razões para que nunca esse encontro se viesse a concretizar.

Feito este intróito, afinal onde está a historieta que eu pretendi aqui narrar?

De facto Savimbi não foi assassinado no local (Lucusse) onde foi vergonhosamente exibido aos jornalistas, correspondentes e fotógrafos internacionais. Foi posto ali, em cima de uma mesa de madeira, por ser esse o local onde existia perto um aérodromo e onde, obviamente, seria mais fácil exibi-lo internacionalmente pois não se iria obrigar os media a penetrar no mato para tirarem as fotografias. Era mais conveniente fazê-lo à saída do avião.

A minha surpresa advém de ter sido alertado por um outro Oficial que esteve comigo no Lucusse que, a mesa onde Jonas Savimbi estava exposto, era exactamente a mesa onde muitas vezes almoçámos em jeito de picnic e onde, também por muitas vezes, eram postas as bebidas e os aperitivos (welcome drinks) quando recebíamos alguém importante que chegava ou partia do Lucusse. Tenho algumas fotografias com ex-camaradas meus nessa mesa.

Mal sabíamos nós, e eu especialmente que com ele me quis encontrar, que 30 anos depois e apesar do acordo feito no Leste (e talvez por causa dele), aquela mesa serviria para exibir um cadáver de um homem que respeitei como inimigo.

Não era uma mesa qualquer em 1972 como não o foi depois em 2002.

Fantasiando e manifestamente especulando, permitam-me admitir que não seria de todo impossível que o meu encontro com Jonas Savimbi pudesse ter ocorrido ali, naturalmente também com outros Oficiais Portugueses. Seria de facto o local adequado, junto ao aérodromo

Se tal tivesse acontecido aquela visão de um antigo combatente morto, exposto naquele lugar, ter-me-ia incomodado de sobremaneira. Muito mais do que de facto me incomodou só por si.

Fonte. grupo do MSN Comunidade Vitural de Saurimo - post de Nuno Saldanha de 16Ago2006

5 comentários:

Anónimo disse...

Também estive no Lucusse em 1972, a partir de Junho desse ano. Fazia parte do BART. 3881, mais concretamente parte integrante da CART. 3540, sendo certo que no Lucusse estava a CCS.

Rui Moio disse...

Obrigado pelo comentátio e por se juntar à nossa tertúlia.

Anónimo disse...

Sou mais um dos que esteve no Lucusse a partir de junho de 1972, integrado no Pel. Rec. da CCS do BART 3881. Por lá me mantive por largos meses.
Também eu fui muitas vezes à pista de aviação com a função de proteção. A mesa é semelhante, mas ... passados trinta anos ainda tinha este estado de conservação?
Manteve-se no local este tempo todo?

São estas as minhas dúvidas.

ferreira,
exfurriel miliciano

Rui Moio disse...

A dúvida do amigo Ferreira é pertinente: de facto, 30 anos a apanhar sol e chuva é muito tempo mas, a mesa é de madeira africana-tropical e esta madeira é muito resistente. Vejamos como nas décadas de 60 e 70 do século XX se mantinham transitáveis as muitas pontes de madeira e de troncos de árvore construídas no leste de Angola ao tempo do General Norton de Matos.

Unknown disse...

Foi com saudade que reli esta grande intervenção de Nuno Saldanha, um testemunho na primeira pessoa que se prolongou na Internet e no tempo depois de vários servidores terem desaparecido (e inerente conteúdo documental).
Este lúcido depoimento (e acto de cidadania) manteve-se inalterado!

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