NUNCA É TARDE PARA APRENDER: AS ARMADILHAS DA HISTÓRIA
NUNCA É TARDE PARA APRENDER: AS ARMADILHAS DA HISTÓRIA
Há cinco anos, um grupo que variava entre duzentos e quinhentos homens fugia pelas terras do Leste de Angola, entre as nascentes dos grandes rios, mudando quase todos os dias de local de dormida, caminhando a pé e à noite. O seu principal problema era a fome. Comiam mel silvestre, restos de mandioca, larvas, plantas e frutos com muito baixo poder nutritivo. Como não podiam disparar para não serem localizados pelo barulho dos tiros, só muito raramente tinham carne, e só em dois ou três momentos levavam consigo meia dúzia de vacas. Equipas destinadas a recolher comida andavam dez dias a apanhar o pouco que havia, para voltar quase sempre só com mel, para três dias. O roubo ou o açambarcamento de comida era punido com chicotadas, fosse feito por soldados ou por oficiais. Os guerrilheiros sonhavam com comida. Literalmente. Mais do que os combates, que se davam apenas nos perímetros defensivos avançados, a fome era a sua principal dificuldade. Passara de "táctica" a "estratégica".Aos nossos olhos de hoje, tudo parecia trocado: papéis, ideias, amizades políticas, "esquerda - direita", geoestratégias. A coluna de guerrilheiros era a Coluna Presidencial, onde marchava o único dirigente guerrilheiro africano que não morreu na cama de um palácio, Jonas Savimbi. Savimbi, talvez o melhor produto de sempre das escolas militares chinesas, lia nos intervalos da marcha, pela enésima vez, os livros de Mao Zedong sobre a "guerra camponesa". Numa das noites, acompanhou atentamente com os seus companheiros o debate Bush - Al Gore, torcendo por Bush. Nas reuniões clandestinas da Direcção da UNITA, realizadas com muita dificuldade no meio da mata, gritava-se o slogan, que era também o da revolução cubana, "Pátria ou Morte Venceremos" e elogiava-se o exemplo de figuras como Lumumba, Che Guevara, Nkruma, e, entre os vivos, Nelson Mandela. O comunicado final de uma dessas reuniões era assinado com o nome de guerra "Jaguar Negro dos Jagas", e os militares guerrilheiros faziam jus a uma panóplia de nomes programáticos como o do general Black Power.
A maioria dos dirigentes que acompanhava Savimbi na sua Longa Marcha final, eram, como ele, um produto das missões protestantes que bordejavam a faixa do Caminho de Ferro de Benguela, onde estações e postos faziam crescer vilas com uma pequena burguesia rural arreigada às tradições africanas de senioridade (Savimbi era um dos Mais Velhos), a uma profunda religiosidade e ao valor da educação como instrumento de promoção pessoal. Eram protestantes, odiavam os desregramentos, a embriaguez, a devassidão. Alguns dos últimos comunicados internos escritos por Savimbi continham anátemas contra esses comportamentos e não era apenas por razões político-militares. O igualitarismo maoista-camponês, o ascetismo revolucionário que impregnava a UNITA e o culto de personalidade de Savimbi, entre o mágico-supersticioso e a "autorictas" africana mais tradicional, eram traços únicos. Não importa se tudo era assim na realidade, mas a vontade de que assim fosse era completamente genuína.Em perseguição da Coluna Presidencial e com o objectivo explícito de matar aquilo a que chamavam a "UNITA militarista" e Savimbi, ia um poderoso exército treinado por cubanos e soviéticos, apoiado por mercenários portugueses e sul-africanos, quase todos antigos aliados da UNITA, uns ligados a empresas de “segurança” luso-angolanas, em que se misturavam generais do MPLA e militantes da extrema-direita portuguesa. O dinheiro vinha do petróleo angolano explorado por norte-americanos. Os aviões que bombardeavam a coluna eram Migs e Sukoy, os aviões de observação eram Tucanos brasileiros pilotados por brasileiros. No plano internacional, o mais activo opositor da UNITA e que tinha sido, com os sul-africanos, o seu mais poderoso aliado eram os EUA da Administração Clinton.A história que o livro de Alcides Sakala relata, para além do seu testemunho pessoal único*, é a história da História como armadilha. Nada parecia estar no seu “sítio” e, no entanto, nada estava fora do sítio. O mundo pós-guerra fria apanhara nos interstícios da sua mudança homens, organizações, países. A UNITA e a figura épica de Savimbi, eram e são um dos casos mais exemplares do que é ser-se apanhado pelas voltas da história. Completamente apanhado.
* Eu conheci a maioria dos personagens deste livro, a começar pelo Alcides Sakala, de quem tenho as melhores recordações, nos bons e nos piores momentos. Por isso não li com indiferença as quase 450 páginas do seu livro, que ganharia muito em ter um mapa e reflecte algumas vezes o carácter repetitivo da narração da "vida", até porque esta era mesmo repetitiva - dormir, acordar, tentar comer, estar sempre pronto para fugir, frio, calor, humidade, doenças. Mas estes são pequenos defeitos para aquele que é um dos melhores testemunhos publicados sobre a nossa história mais contemporânea.
A maioria dos dirigentes que acompanhava Savimbi na sua Longa Marcha final, eram, como ele, um produto das missões protestantes que bordejavam a faixa do Caminho de Ferro de Benguela, onde estações e postos faziam crescer vilas com uma pequena burguesia rural arreigada às tradições africanas de senioridade (Savimbi era um dos Mais Velhos), a uma profunda religiosidade e ao valor da educação como instrumento de promoção pessoal. Eram protestantes, odiavam os desregramentos, a embriaguez, a devassidão. Alguns dos últimos comunicados internos escritos por Savimbi continham anátemas contra esses comportamentos e não era apenas por razões político-militares. O igualitarismo maoista-camponês, o ascetismo revolucionário que impregnava a UNITA e o culto de personalidade de Savimbi, entre o mágico-supersticioso e a "autorictas" africana mais tradicional, eram traços únicos. Não importa se tudo era assim na realidade, mas a vontade de que assim fosse era completamente genuína.Em perseguição da Coluna Presidencial e com o objectivo explícito de matar aquilo a que chamavam a "UNITA militarista" e Savimbi, ia um poderoso exército treinado por cubanos e soviéticos, apoiado por mercenários portugueses e sul-africanos, quase todos antigos aliados da UNITA, uns ligados a empresas de “segurança” luso-angolanas, em que se misturavam generais do MPLA e militantes da extrema-direita portuguesa. O dinheiro vinha do petróleo angolano explorado por norte-americanos. Os aviões que bombardeavam a coluna eram Migs e Sukoy, os aviões de observação eram Tucanos brasileiros pilotados por brasileiros. No plano internacional, o mais activo opositor da UNITA e que tinha sido, com os sul-africanos, o seu mais poderoso aliado eram os EUA da Administração Clinton.A história que o livro de Alcides Sakala relata, para além do seu testemunho pessoal único*, é a história da História como armadilha. Nada parecia estar no seu “sítio” e, no entanto, nada estava fora do sítio. O mundo pós-guerra fria apanhara nos interstícios da sua mudança homens, organizações, países. A UNITA e a figura épica de Savimbi, eram e são um dos casos mais exemplares do que é ser-se apanhado pelas voltas da história. Completamente apanhado.
* Eu conheci a maioria dos personagens deste livro, a começar pelo Alcides Sakala, de quem tenho as melhores recordações, nos bons e nos piores momentos. Por isso não li com indiferença as quase 450 páginas do seu livro, que ganharia muito em ter um mapa e reflecte algumas vezes o carácter repetitivo da narração da "vida", até porque esta era mesmo repetitiva - dormir, acordar, tentar comer, estar sempre pronto para fugir, frio, calor, humidade, doenças. Mas estes são pequenos defeitos para aquele que é um dos melhores testemunhos publicados sobre a nossa história mais contemporânea.
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