quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Do Acórdão

Nota
Leonel Vicente apresenta-nos um resumo do acórdão que condenou os arguidos do Processo Casa Pia.
Poderá proceder ao download do acórdão na forma de ficheiro PDF neste endereço:
Rui Moio

Do Acórdão

via Memória Virtual by Leonel Vicente on 9/20/10

Surpreendentemente, depois do tão glosado atraso na disponibilização do Acórdão relativo ao processo Casa Pia, decorrida que está uma semana, mal se rompeu o silêncio sobre o seu tão aguardado conteúdo. Pela sensibilidade da matéria? Pela sua extensão (1735 páginas)?
Começando pela análise do percurso pessoal e estatuto funcional dos arguidos Carlos Silvino da Silva e Manuel Abrantes na Casa Pia de Lisboa (páginas 544 a 706), e pelo relacionamento de Carlos Silvino com educandos e funcionários da Casa Pia e crimes por ele cometidos, o Acórdão compreende ainda dezenas de páginas dedicadas à demonstração de que as provas apresentadas pela defesa, relativas nomeadamente a listagens de chamadas telefónicas (páginas 748 a 779), não eram inexpugnáveis (desde logo, quando se percebe que, por exemplo, Carlos Cruz, utilizou, entre 1999 e 2003, 16 aparelhos de telemóvel, com pelo menos três números diferentes, em utilização paralela no tempo); assim como sobre a falta de fiabilidade dos registos de controlo de entradas e saídas de viaturas da Casa Pia (páginas 798 a 868), possibilitando assim que Carlos Silvino utilizasse essas viaturas em deslocações a Elvas, sem qualquer registo.
Por outro lado, conclui que o facto de não haver qualquer referência testemunhal de terceiros relativamente à presença dos arguidos em Elvas, ou na casa da Av. das Forças Armadas, por exemplo, assim como ao facto de nenhum dos vizinhos de Elvas revelar ter-se apercebido de "alguma movimentação anormal", não obsta («possibilidade ou impossibilidade») a que os factos possam ter efectivamente ocorrido (página 1239) – mesmo que, por vezes, em "data e local não determinado"…
Sem certezas absolutas – não obstante referir ter sido adoptado o standard requerido na circunstância, de um elevado nível de exigência, da «prova para além de qualquer dúvida razoável» -, ouvidos arguidos, vítimas, peritos, consultores técnicos, e cerca de nove centenas de testemunhas (com a motivação da decisão de facto do processo principal a ocupar 206 páginas, entre as páginas 313 e 518 do Acórdão), o Tribunal foi formando uma convicção, baseada nos depoimentos das vítimas (páginas 896 a 1422), na sua aparente genuinidade – incluindo as suas contradições, inconsistências e "passos em falso" -, em que a palavra de Carlos Silvino da Silva não terá deixado de ser decisiva no desequilibrar dos "pratos da balança".
Em síntese, na ausência de provas materiais, a condenação acaba por decorrer fundamentalmente das declarações das vítimas e de um dos arguidos.
Com alguns juízos inevitavelmente discutíveis, como são – apenas a título de exemplo – as situações seguintes:
  • a convicção de que uma das vítimas falava verdade precisamente por, ao ser apanhado numa inconsistência sobre a forma como reconhecera Gertrudes Nunes, não ter "inventado" uma história para obstar a essa falha (página 1208);
  • o facto desta, Gertrudes Nunes, no seu depoimento, se ter referido a Carlos Silvino como "Bibi" (página 1256), valorado como indício de que a arguida o conheceria de forma próxima (quando era público e notório que todo o público em geral o conhecia por essa alcunha, amplamente mediatizada);
  • o testemunho de Raul Solnado, dizendo que não lhe «passava pela cabeça» que Carlos Cruz pudesse estar envolvido, mas que, naturalmente, não podia pôr as «mãos no fogo» por ele (nem por ninguém, poder-se-ia dizer…) – páginas 1060 e 1263 (generalização);
  • em termos gerais, a opinião de que as vítimas não teriam a «capacidade de inteligência e sofisticação de raciocínio» (página 889) necessárias para elaborar uma história com uma tão complexa teia.
E deixando naturalmente campo aberto a uma forte margem de subjectividade, no que respeita à decisão de considerar os factos como provados (detalhados, no que respeita ao processo principal, em 170 pontos, ao longo de 117 páginas, da 102 à 218) ou não provados (74 pontos, detalhados nas páginas 219 a 293) – o que não deixará de ser explorado nos recursos (porque foi, apenas, condenado Carlos Cruz pelos acontecimentos da casa de Elvas?).
A minha opinião: não obstante as fragilidades latentes da prova e da forma como surge fundamentada, parece difícil crer que os juízes – ponderados todos os elementos, ao longo de anos de audiências, de interrogatórios e contra-interrogatórios, cruzamento de dados e outras técnicas especializadas, envolvendo também um número significativo e variado de responsáveis pela investigação – não tenham feito uma apreciação e avaliação correcta quanto ao cerne da questão…

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